Maria Matos Silva
mmatossilva@isa.ulisboa.pt
Instituto Superior de Agronomia, Universidade de Lisboa; CIAUD, Centro de Investigação de Arquitetura Urbanismo e Design, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal
Ana Beja da Costa
anabejacosta@fa.ulisboa.pt
CIAUD, Centro de Investigação de Arquitetura Urbanismo e Design, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal
Para citação:
MATOS SILVA, Maria; BEJA DA COSTA, Ana – Cultura em ecologia – uma tradição revolucionária. Estudo Prévio 25. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, dezembro 2024, p. 237-253. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/25.8
Artigo recebido a 26 de julho de 2024 e aceite para publicação a 9 de outubro de 2024.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Cultura em ecologia – uma tradição revolucionária
Resumo
A ecologia é, hoje em dia, culturalmente valorizada, o que não é o mesmo que afirmar que exista cultura em ecologia. É facto que a evolução técnica permitiu avanços incríveis e extremamente engenhosos que devem ser valorizados, e aproveitados. Ainda assim, precisamos de avançar para novos paradigmas e enriquecer o conhecimento e a prática atuais, reivindicando por projetos que promovam o estabelecimento de valores ecológicos, culturais e estéticos, através de relações convincentes, experimentais ou não, entre todos os elementos, vivos ou materiais.
O espaço público oferece essa possibilidade, se pensado a partir de uma categoria ecológica, reforçando o papel da prática projetual no reestabelecer de relações antigas, ou na promoção de novas. Um sistema de espaços públicos de sustentação ampla que, ao integrar o pensamento de base ecológica, abraça a paisagem de modo que a ansiedade (ainda) desproporcionada sobre o seu controlo seja pacificada e equilibrada com a preferência por projetos abertos à incerteza.
Palavras-chave: Arquitetura Paisagista, Ecologia, Cultura, Espaço Público, Projeto
1. “Paisagem como Expressão de Cultura” (Cabral, 1967)
Ao longo do tempo, a nossa relação com os sistemas naturais dos quais fazemos parte foi mudando. Experiências e memórias individuais e comunitárias foram construindo memórias coletivas, modelando diferentes culturas, diferentes modos de estar e agir no mundo em que vivemos. Assim fomos desenhando diferentes paisagens reveladoras dessa mesma cultura. Já em 1967 Francisco Caldeira Cabral escreveu sobre a “Paisagem como Expressão de Cultura”, ideia que Gonçalo Ribeiro Telles perpetuou também ao afirmar que “… a paisagem é o expoente máximo da cultura de um povo…” (TELLES, 1985), no que esta tem de melhor e de pior.
Olhando, a título de exemplo, para o sistema hídrico, um dos sistemas basilares da paisagem, podemos admirar uma clara diferenciação entre territórios tendo em conta as diferentes formas como este sistema foi gerido e moldado ao longo de épocas com diferentes prioridades ecológicas, sociais e económicas. Tal como nos relembra Viganò et al (2016), embora os processos associados à água sejam intrinsecamente dinâmicos e inconstantes, é o sistema da água que dá origem às gravuras mais duradouras na paisagem. Da mesma forma que a permanência do sistema hídrico é estrutural na paisagem, também a mutabilidade dos seus processos é um sistema estruturante. De facto, a paisagem de um rio não é apenas água e seus sistemas hídricos associados, corresponde também às relações de todo este sistema com a comunidade.
Como sabemos, existe uma grande diferença nas paisagens entre o “antes” e o “depois” da revolução industrial. Neste ponto de viragem, as práticas tradicionais, que pressupunham inevitavelmente uma relação de poder equilibrada entre as comunidades e os processos naturais, mudaram progressivamente para operações cujo principal objetivo consistia em tirar o máximo partido dos sistemas naturais e seus recursos, visando o seu controlo. Naturalmente, graves catástrofes climáticas vieram mais tarde clarificar como é utópica esta ambição de controlarmos integralmente qualquer sistema natural. Hoje, aparenta ser de conhecimento comum que essa é uma ideia não apenas inútil, como impossível.
Tal como nos é proposto por Brown et al (2008) [1], podemos identificar em conhecidos projetos de espaço público em Lisboa, diferentes “estágios” de evolução cultural na relação com os sistemas naturais. Se alguns projetos estiveram à frente do seu tempo – como o Parque do Campo Grande proposto por Ressano Garcia em 1903 (não construído) (SILVA, 1989), ou o projeto do Estádio Nacional no Jamor de Caldeira Cabral (Andresen, 2001: 60-97), ou ainda a proposta da década de 1950, abandonada, de Caldeira Cabral e Ribeiro Telles para a requalificação da Avenida da Liberdade (DINIZ, 2023), outros são exemplos do pensamento contemporâneo ou mesmo vanguardista, tais como o Parque do Tejo e do Trancão (Hargreaves Associates, João Nunes – PROAP, 1994-2004) ou o Parque Gonçalo Ribeiro Telles (NPK, 2021). Outros, por sua vez, ainda se podem considerar como estando atrás do seu tempo, como a encomenda de um Plano Geral de Drenagem para a cidade de Lisboa (MATOS SILVA, 2016) [2].
2. Pensamento de base ecológica no projeto de Arquitetura Paisagista
Em 2022 o curso de Arquitetura Paisagista em Portugal comemorou 80 anos de existência, sendo uma das mais antigas tradições europeias de ensino em Arquitetura Paisagista. Se a sua antiguidade permite um particular grau de maturidade, mais interessante é aquilo que estes 80 anos de história proporcionaram, nomeadamente no que diz respeito ao conhecimento e experiência acumulados.
Pegando no mote proposto para este dossier n.º 25 da revista Estudo Prévio, de pensar a cidade e o espaço público do pós-Abril, e pensando nos projetos de arquitetura paisagista nacionais, poderemos afirmar que existe uma diferença substancial no modo de projetar entre o “antes” e o “depois” da revolução?
A ideia de Arquitetura Paisagista que nos chega de Caldeira Cabral de “Ars cooperative Naturae”, ou “a arte de convencer a natureza a colaborar connosco (ANDRESEN, 2001: 106, trad. autoras), define a disciplina como uma prática propositiva, que implica ação para uma mudança, e que sendo uma arte tem tanto um lado intuitivo e emocional, estético, afetivo e cultural, como um lado técnico, no caso, associado à ciência de bem conhecer as relações entre o Homem e os processos da (também sua) natureza. Enquanto arte baseada na natureza, a Arquitetura Paisagista tem deste modo enraizado de forma interligada um pensamento de base cultural, questionando sobre o que precisa de ser mudado, um pensamento de base estética, dedicado ao que emociona e faz memória, e um pensamento de base ecológica, fundamentalmente, científico e técnico.
No âmbito das celebrações sobre os 80 anos de história do curso de Arquitetura Paisagista em Portugal, foi publicado o livro “Portuguese Landscape Architecture Education, Heritage and Research: 80 Years of History” (MATOS SILVA et al, 2024) que reúne uma série de artigos, debruçados sobre a história do ensino, as influências duradouras de figuras-chave, e os marcos fundamentais que moldaram o campo e a relevância da disciplina [3]. De forma geral, ao percorrermos os capítulos deste livro, somos transportados até aos fundamentos do pensamento ecológico, basilar no ensino de Arquitetura Paisagista e um poderoso instrumento da prática profissional [4]. Pensamento este que pode ser estruturado pelos editores nos três seguintes pontos: 1) multiplicidade, diversidade e interconectividade de relações; 2) processos e ciclos sistémicos com dinâmicas sempre “em aberto” e 3) incertezas e variabilidades enquanto forças motrizes para a mudanças positivas (MATOS SILVA, 2024).
- Tal como o ser humano, as paisagens são tanto mais saudáveis e resistentes quanto mais fortes, seguras, amplas, complexas e múltiplas forem as suas anatomias e as suas relações e interconexões, tanto internas como externas aos seus sistemas. Um princípio de pensamento ecológico que desafia constantemente as tendências existentes a favor de qualquer tipo de monocultura (cultura aqui aplicada em todos os seus significados, desde a criação de plantas ou animais, até à educação e valores civilizacionais).
- Por outro lado, a compreensão e respeito pelos ciclos naturais, como o ciclo da água, o ciclo dos nutrientes ou o fluxo de energia, bem como o reconhecimento da sua dinâmica sempre “em aberto”, estão fortemente ligados a uma relação particularmente íntima com o fator “tempo”. Este, sendo o motor subjacente de qualquer processo, é assim entendido como um valor em si mesmo. Como refere J. B. Jackson, “O ato de desenhar a paisagem é um processo de manipulação do tempo” (Jackson, 1984). Na mesma linha de raciocínio, João Nunes desenvolve a ideia de “domesticação” ao descrever a sua forma de trabalhar e projetar com os processos naturais em benefício do Homem (NUNES et al, 2011), reconhecendo a existência e a necessidade de respeitar os múltiplos “tempos” existentes como constituintes e atores no desenho da paisagem, bem como a irrepetibilidade dos momentos. Neste sentido, o pensamento a longo prazo como “modus operandi”, juntamente com uma elasticidade permanente entre escalas e os tempos de diferentes processos, é também uma caraterística indissociável do pensamento **ecológico. Assim como a certeza de que toda e qualquer intervenção será sempre uma obra inacabada.
- Por fim, a proposta que nos chega do pai da Arquitetura Paisagista em Portugal para a promoção de um continuum naturale [5], ou uma paisagem em continuado equilíbrio dinâmico, nomeadamente na procura permanente de uma resolução balanceada entre trocas dentro/fora dos ciclos e sistemas abertos seus constituintes, é aqui considerada como o motor que alimenta as maiores realizações criativas provenientes do pensamento de base ecológica. Esta inquietação de querer continuamente melhorar a equação da gestão dos recursos naturais e dos fluxos globais de energia para um resultado que deveria idealmente tender para zero, é claramente evidenciada em muitos projetos de Arquitetura Paisagista que artisticamente utilizaram sistemas culturais e naturais para resolver problemas complexos como inundações, escassez de água, mobilidade, perda de biodiversidade ou gestão de recursos.
Voltando à pergunta que motiva este ensaio, se por um lado é expectável uma mudança cultural ao longo de oito décadas, implicadas com circunstâncias sociais e económicas especificas, será que existiu uma revolução cultural nos princípios de base ecológica presentes na prática da Arquitetura Paisagista? Se entendemos os traçados formais ou naturalistas como expressões de correntes culturais próprias, pelo contrário, e por hipótese, os princípios técnico-científicos de base ecológica tradicionais são os mesmos, eventualmente reforçados com maior conhecimento e experiência acumulados.
3. Antes e depois de Abril, nos 80 anos de Arquitetura Paisagista em Portugal
Debrucemo-nos sobre quatro projetos de espaço público desenhados por arquitetos paisagistas na Área Metropolitana de Lisboa (AML) (Figura 1), dois antes de 1974 – Estádio Nacional (1938) e Parque do Vale do Silêncio (1967) – e dois depois – Corredor Verde de Monsanto (2002 – 2020) e Parque Linear Ribeirinho do Tejo (2012), procurando identificar a presença dos princípios de pensamento ecológico acima mencionados.
Figura 1 – Localização dos casos de estudo.
3.1 Estádio Nacional
A premissa para a construção do Estádio Nacional no vale da Ribeira do Jamor foi amplamente estudada e discutida, destacando-se o parecer inicial de Francisco Caldeira Cabral sobre as propostas de anteprojeto apresentadas por Cristino da Silva, ou por Jorge Segurado, ambas propondo a implantação do estádio e de toda a infraestrutura edificada secundária e viária sobre a linha do vale. Deste parecer, três princípios fundamentados na fisiografia do lugar foram transportados para o projeto: o relevo, os ventos dominantes e os solos, que conduziram à proposta de implantação do estádio principal na encosta, enquadrado por uma cortina de vegetação densa, que protege dos ventos norte-sul dominantes e proporciona, para além do enquadramento cénico do estádio e o favorecimento de perspetivas e pontos de vista, o conforto bioclimático, ensombramento e contato com a natureza para os utentes (Figura 2). O vale do rio Jamor foi mantido livre de edificação, preservando os solos mais ricos, as dinâmicas hídricas e a proximidade com a linha de costa, apenas interrompida pela ferrovia pré-existente (ANDRESEN, 2003).
O ecossistema melhorado
O projeto do Estádio Nacional coincidiu com o início da prática da Arquitetura Paisagista em Portugal [6]. Os fundamentos ecológicos do projeto foram estratégicos, e são ainda hoje demonstrativos da atualidade e sustentabilidade das suas premissas projetuais. A complexidade do ecossistema original foi mantida, e melhorada pela construção de um leito de cheia mais rico pela possibilidade do seu usufruto, como também pela possibilidade de expansão das funções e infraestruturas desportivas e de lazer, em associação com a manutenção da flexibilidade necessária ao funcionamento das estruturas hídricas. Uma recente adição é o projeto do Eixo Verde e Azul (2018-21), que se estende num corredor ecológico e rede linear de percursos de mobilidade suave ao longo do rio Jamor, num esforço intermunicipal entre Sintra, Amadora e Oeiras (SANTOS; COSTA, 2023: 49).
Figura 2 – Síntese interpretativa do caso do Estádio Nacional.
Parque do Vale do Silêncio
O Parque do Vale do Silêncio, que mobilizou uma equipa projetista onde se incluíam os Arquitetos Paisagistas Manuel de Sousa da Câmara e Edgar Fontes, foi pensado desde a génese do plano de urbanização dos Olivais (1966). O Parque foi previsto numa perspetiva multifuncional, providenciando vários serviços de ecossistemas aos moradores das áreas adjacentes, nomeadamente: o tamponamento de fumos, ruídos e odores proveniente de atividades industriais existentes junto ao rio (onde é atualmente o Parque das Nações), e do aeroporto (CUNHA, 2015); o (re)estabelecimento do contacto dos moradores com zonas verdes, e apoio às escolas planeadas na sua orla; ou a poupança de recursos hídricos e de manutenção, nomeadamente através da sementeira de um prado de sequeiro na clareira central (Figura 3). Tudo isto através de um desenho particularmente cuidado na modelação do terreno e um plano de plantação composto de espécies autóctones, localizadas segundo a sua aptidão ecológica, topografia e exposição solar das encostas (CÂMARA, 2021).
O ecossistema melhorado
A toponímia ‘Vale do Silêncio’ advém da intenção inicial de dotar o bairro dos Olivais de um parque em que o silêncio e o contato com a natureza fossem as suas qualidades maiores (CASTEL-BRANCO in CÂMARA, 2021: 136). As opções de projeto ditaram que o vale ficasse resguardado das infraestruturas viárias, industriais e do aeroporto, protegendo do ruído e da poluição. Tal foi conseguido através da modelação de terreno, que acentuou a configuração morfológica do vale. Por sua vez, o plano de plantação maioritariamente autóctone, da autoria do Arq. Paisagista Sousa da Câmara (CÂMARA, 2018), realça esta mesma modelação de terreno do vale, através de uma orla biodiversa e densa que protege dos ventos dominantes e favorece as brisas oeste-este, e a consequente regulação térmica do local. O prado da clareira central constitui uma considerável área permeável, onde as águas pluviais se acumulam e infiltram. Pela qualidade do seu desenho, e pela pertinência das suas funções e usos, o Parque do Vale do Silêncio tornou-se uma referência à escala da cidade, e veio acrescentar mais uma ‘peça’ à rede de corredores ecológicos fundamentais na estrutura verde de Lisboa. Mais recentemente, a rede de ciclovias de Lisboa fez passar um percurso ao longo do parque.
Figura 3 – Síntese interpretativa do caso do Parque do Vale do Silêncio.
Corredor Verde de Monsanto
O Corredor Verde de Monsanto, idealizado e desenhado por Gonçalo Ribeiro Telles (TELLES, 1997), evoca os princípios continuidade ecológica atrás mencionados, ligando o Parque Florestal de Monsanto ao rio Tejo através de vários espaços verdes (Figura 4). Foi finalizado apenas em 2020 através de novos espaços públicos onde se incluem pontes ciclo-pedonais, jardins, hortas, searas, parque infantil, parque de skate, miradouro e várias esplanadas (BORGES, 2012).
Seguindo a sua sequência temporal: em 2002 o Corredor Verde incorporou o Jardim da Amnistia Internacional, cujo espaço se divide entre talhões de agricultura urbana, prados de sequeiro e uma série de equipamentos lúdicos que servem a população da Freguesia *de Campolide; em 2009 foi integrado o Parque Urbano da Quinta do Zé Pinto; em 2010 estabeleceu-se a passagem superior à Av. Calouste Gulbenkian e a ciclovia na Av. General Correia Barreto de acesso ao parque do Calhau, em Monsanto; e em 2012 instalou-se o prado biodiverso na área adjacente ao Palácio da Justiça (SANTOS et al, 2025).
O ecossistema melhorado
Cada um dos espaços públicos acima mencionados representa uma sequência de stepping stones da teoria ecológica (FORMAN, 2014) que concretizam o Corredor Verde de Monsanto em várias tipologias de espaço público. As intervenções, realizadas com financiamento público através da Câmara Municipal de Lisboa e Juntas de Freguesia aplicam o conceito de corredor verde e conectividade ecológica no seu sentido mais literal. Os projetos são localizados essencialmente em zonas de cabeço, onde a potenciação de zonas permeáveis para infiltração é particularmente importante. Por outro lado, a introdução de hortas urbanas remete para a autossuficiência e segurança alimentar da população na sua proximidade; também a introdução pioneira em Lisboa de prado biodiverso reforça a qualidade ecológica pela variedade de herbáceas de sequeiro e fauna associada, com baixa manutenção e adaptado às condições hídricas e bioclimáticas do local.
Importa igualmente reforçar a importância da integração da conectividade e acessibilidade por meios de mobilidade suave e pedonal ao longo dos vários espaços públicos do Corredor, que estabelecem ligações sobre momentos topográficos e infraestruturais desafiantes. Destacamos nomeadamente as pontes ciclo-pedonais sobre a Av. Calouste Gulbenkian e Rua Marquês de Fronteira.
Figura 4 – Síntese interpretativa do caso do Corredor Verde de Monsanto.
3.4 Parque Linear Ribeirinho do Tejo
O Parque Linear Ribeirinho do Tejo surgiu na sequência da expropriação de terrenos industriais na margem do Tejo, e da estratégia de recuperação ambiental da frente ribeirinha do Município de Vila Franca de Xira, com melhoria do acesso e usufruto público das margens do rio, que constituem aqui não apenas um marco cénico, mas também um marco de biodiversidade de exceção.
O parque, projetado pelo atelier de Arquitetura Paisagista Topiaris, combina dois espaços distintos: uma primeira área multifuncional, a Praia dos Pescadores, localizada num antigo depósito de areia à beira-rio; e uma segunda área, adjacente à primeira, que consiste em seis quilómetros de caminhos pedonais sobre os combros que separam o sapal dos terrenos agrícolas, e que ligam aos caminhos agrícolas de terra batida pré-existentes. Na Praia dos Pescadores, a areia foi mantida como substrato base, sobre a qual se estabeleceram maciços de vegetação composta por espécies autóctones, adaptadas à salsugem e à maresia proveniente do rio. Aqui se encontram também zonas de estadia e infraestruturas de desporto e de restauração. Os caminhos entre a Praia e as áreas agrícolas e naturais adjacentes no estuário foram concretizados num passadiço de madeira sobre-elevado, com zonas de descanso e uma zona dedicada à observação de pássaros (Figura 5) (TOPIARIS, 2010-2024).
O ecossistema melhorado
Os princípios de desenho ecológico são neste projeto representados na leveza das opções de desenho e dos materiais (inertes e vivos) utilizados. O Parque Linear Ribeirinho do Tejo tornou-se um exemplo de referência, na medida em que assume os vestígios pós-industriais do lugar ao mesmo tempo que estabelece sobre estes uma plataforma de acesso e de usufruto do rio Tejo. O passadiço sobre os combros deu a conhecer a paisagem única das lezírias do Tejo através da possibilidade de mobilidade suave de peões e ciclistas, oferecendo um espaço publico que se integra no ecossistema do sapal e suas dinâmicas de marés. Efetivamente, toda a área é flexível às dinâmicas hidrológicas, mesmo em cenário de cheia. A biodiversidade é aqui posta em evidência, tanto através da escolha das espécies plantadas, como pela proximidade à extensa zona húmida de mouchão do Tejo.
Figura 5 – Síntese interpretativa do caso do Parque Linear Ribeirinho do Tejo.
4. Cultura em ecologia
Hoje a ecologia é culturalmente valorizada, o que não é o mesmo que dizer que exista cultura em ecologia. Como afirma André Barata, a atual crise planetária (económica, social, climática, ambiental, …) exige uma “metamorfose” paradigmática através de pequenos contágios e contaminações, que determinam uma tendência, onde tudo deve ser pensado a partir de uma categoria ecológica, obrigando-nos a colocar as relações em primeiro lugar: “a relação convivial, a relação de diversidade ambiental; mas também cultural, de modos de ver o tempo, o espaço e os lugares” (RIOS, 2022: 13, BARATA, 2022). Ora, se o pensamento de base ecológica que evidenciamos na disciplina de Arquitetura Paisagista responde a este desafio, importa que este seja partilhado com outras disciplinas, assim como na sociedade civil.
São muitos os que hoje defendem que para enfrentar crises globais cada vez mais iminentes, as comunidades precisam de fazer a transição para abordagens de conceção holísticas em oposição a soluções únicas ou a meras correções tecnológicas de um determinado parâmetro (uma lição de pensamento sistémico inicialmente explanada no relatório “Limits to Growth” de 1972). É facto que a evolução técnica permitiu avanços incríveis e extremamente engenhosos que devem ser valorizados, aproveitados, e não ignorados. No entanto, precisamos de enriquecer o conhecimento e a prática atuais, avançando para um novo paradigma que reivindica por projetos que promovam o estabelecimento de valores ecológicos, culturais e estéticos, colocando o foco em relações convincentes, experimentais ou não, entre todos os elementos, vivos ou materiais. Projetos inclusivos da complexidade, aceitadores da incerteza e da mudança, que considerem de igual forma conhecimentos estéticos e culturais subjetivos a par de competências científicas e técnicas objetivas. Devemos, pois, promover uma cultura de base ecológica que se pode nutrir da experiência e conhecimento de décadas. Um processo que engloba o investimento no desenvolvimento de uma agenda de valores enraizada em princípios culturais, estéticos e ecológicos, saindo da esfera estritamente académica.
O desenho de espaço público oferece essa possibilidade, de ser pensado a partir de uma categoria ecológica, reforçando o papel da prática projetual no reestabelecer de relações antigas ou na promoção de novas. Essa é nomeadamente uma proposta do projeto de investigação “MetroPublicNet” (SANTOS, 2020), que, evidenciando o processo incremental dos projetos de espaço público ao longo dos últimos 25 anos, sugere as bases conceptuais de uma rede metropolitana de espaços públicos enquanto ferramenta operacional para a tomada de decisões políticas capazes de responder aos principais desafios atuais. Um sistema de espaços públicos de sustentação ampla que, integrando o pensamento de base ecológica, abraça a paisagem de modo que a ansiedade (ainda) desproporcionada sobre o seu controlo seja pacificada e equilibrada através de projetos abertos à incerteza, continuamente monitorizados, consequentes, seguros e inclusivos.
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Notas
1. Estabelecendo um paralelo com a “Urban Water Transitions Framework” (BROWN; KEATH; WONG, 2008: 1-10).
2. Excerto da recente entrevista a Kongjian Yu no Jornal Publico: “Quando a pergunta é sobre o plano de drenagem de Lisboa, que implica um investimento de 250 milhões de euros e, entre outros pontos, a abertura de dois grandes túneis, o arquiteto paisagista ri-se abertamente. ‘Esse é o modelo business as usual. Não vai resolver o problema’, diz.” (SOLDADO, 2024).
3. A consolidação de linhas de investigação especificamente relacionadas com projeto, planeamento e gestão da paisagem, é revelada ao longo dos capítulos, evidenciando uma clara e enredada ligação entre as atividades educativas e profissionais, elucidando ainda como a Arquitetura Paisagista Portuguesa está na vanguarda da teoria e métodos específicos da disciplina, nomeadamente nos domínios da sustentabilidade, resiliência e interdisciplinaridade aplicados à arquitetura de sistemas complexos de paisagem.
4. Tal como esclarece Farinha Marques no seu artigo “Nature-based solutions in the teaching of landscape design by Manuel de Sousa da Câmara”, conceitos hoje em voga na gíria da sustentabilidade, tais como “nature-based solutions” ou “ecosystem services”, existem desde a introdução do curso de Arquitetura Paisagista no circuito académico português por Francisco Caldeira Cabral em 1942 (FARINHA-MARQUES, 2024).
5. Princípio disseminado em Portugal por Francisco Caldeira Cabral a partir dos anos 40 que apenas após a Revolução Democrática veio a ser definido em Lei, nomeadamente na Lei de Bases do Ambiente nº11/87 de 7 de abril, como sendo “o sistema contínuo de ocorrências naturais que constituem o suporte da vida silvestre e da manutenção do potencial genético e que contribui para o equilíbrio e estabilidade do território”.
6. “Portugal pode orgulhar-se de ter tido excelentes projetistas de jardins no século XIX – a par de outros países como a Alemanha, a Inglaterra e a Bélgica – mas Cabral nunca assumiu esse papel. Reconheceu ter aprendido técnicas de jardinagem e horticultura com eles, mas disse que eles perderam “a ideia essencial da forma”. Cabral foi um iniciador, não um seguidor” (trad. autoras de ANDRESEN, 2001).