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Pedro Castelo

pcaste01@mail.bbk.ac.uk; pedro@esap.pt
Birkbeck University of London, England e CEAA/ESAP, Porto, Portugal.

 

Para citação: CASTELO, Pedro – Receção e comentário sobre a cultura arquitetónica moderna brasileira em Portugal. Uma breve análise a partir de duas publicações periódicas de arquitetura. Estudo Prévio 23. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2023, p. 80-105. ISSN: 2182-4339 [Available at: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/23.5

Artigo recebido a 4 de setembro de 2023 e aceite para publicação a 15 de setembro de 2023.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Receção e comentário sobre a cultura arquitetónica moderna brasileira em Portugal. Uma breve análise a partir de duas publicações periódicas de arquitetura.

 

Resumo

Este artigo foca-se nos intercâmbios da cultura arquitetónica moderna que aconteceram a partir de meados do século XX entre a América do Sul, em particular o Brasil, e Portugal. Esta breve análise suportar-se-á nos elementos que constituíram a receção e a disseminação dessa mesma cultura em diversas publicações da especialidade, particularmente através das revistas periódicas existentes na altura. O objetivo é o de reconstituir um percurso de relações entre os dois hemisférios que aconteceram num período da história relativamente recente da arquitetura, através de um levantamento detalhado dos seus momentos-chave.

Quando analisados pela perspetiva daquilo que se publicou, esses instantes de influência cultural e artística, por serem escassos, mas nem por isso irrelevantes, tornam-se mensuráveis e importantes para a revisão histórica dos processos de contacto entre as duas geografias. Uma análise minuciosa pode oferecer-nos uma perspetiva mais realista dos processos de produção e transferência de conhecimento que aconteceram ao longo de um período de intenso desenvolvimento.

Por um lado, pretendemos rever o conteúdo dessas relações entre Portugal e o Brasil no campo da arquitetura, e por outro estabelecer um quadro crítico de como essa relação passou a ser entendida dentro de mitologias históricas afetadas por fenómenos da psicologia coletiva pós-colonial.

Nesse processo iremos observar as características dessas influências, não só do ponto de vista estético e criativo, com as suas nuances diversas, mas também enquanto modelo intelectual e ideológico de produção e desenvolvimento urbano e social, que ao atravessar fronteiras se tornou prevalente e hegemónico.

Começaremos por identificar brevemente o papel fundamental de determinadas publicações na disseminação e reconhecimento internacional de uma arquitetura moderna arrojada, a par com as produções dos grandes mestres do movimento moderno do pós-guerra, e que se constituiu como sendo caracteristicamente brasileira. De seguida consideraremos o modo como estes foram recebidos em Portugal e reportados primeiro pela revista ARQUITETURA, e depois pela revista BINÁRIO, onde aprofundaremos o estabelecimento de um intercâmbio mais estruturado entre Portugal e Brasil, com uma cobertura mais extensa e regular feita por esta última. Concluiremos com um comentário sobre estes processos e do que eles podem significar para nós hoje.

 

Palavras-chave:  Arquitetura Brasileira; Intercâmbios de Arquitetura; Disseminação Cultural; Era Pós-Guerra; Publicações de Arquitetura, Relações Brasil-Portugal; Desenvolvimento Urbano e Social; Modernismo; Análise de Periódicos; Influências Transculturais; Identidade Cultural; Revisão Histórica.

 

Um breve comentário sobre os grandes fluxos do modernismo.

Uma das narrativas mais estabelecidas dos movimentos vanguardistas da primeira metade do século XX tem precisamente origem numa das ocasiões de movimentação e troca mais marcantes do século. Os fluxos migratórios do pós-guerra foram notoriamente identificados por Siegfried Giedion no seu livro Espaço, Tempo e Arquitetura como tendo tido um papel fundamental no desenvolvimento e maturação da arquitetura moderna, em que os processos de hibridização levaram a uma diversificação das linguagens e potenciaram a criação de novas arquiteturas.

A adoção e expansão dos cânones da arquitetura moderna durante a primeira metade do século XX, sobretudo os advindos do êxodo norte-americano, foram inúmeros e têm sido amplamente estudados e identificados; entre eles estão as contribuições incontornáveis de figuras como Mies van der Rohe, Walter Gropius e Marcel Breuer, ou Moholy-Nagy, Victor Gruen, entre muitos outros, que atuaram como educadores e profissionais nos EUA, ajudando a revolucionar o ensino da arquitetura e a moldar o percurso da arquitetura do século XX[1].

Mas estes estão longe de terem sido os únicos que, fazendo parte de uma diáspora mais alargada, tiveram a oportunidade de pôr em prática as suas ideias de uma forma igualmente desimpedida. No Brasil temos, por exemplo, os trabalhos de Warchavchik ou do casal Bardi, que souberam traduzir as aspirações de uma sociedade que se começava a industrializar, sobretudo no período pós-1930, e de Getúlio Vargas, incorporando diferentes elementos trazidos do seu percurso pessoal e da sua bagagem cultural.

É num contexto de expansão económica, social e artística que o Brasil se afirma como um novo centro de criatividade vanguardista. Mas é sobretudo graças a determinados momentos de divulgação que esta identidade se estabelece e passa a ser reconhecida a nível internacional. Este esforço em estabelecer uma linha de pensamento comum e uma genealogia criativa aparece primeiro na mostra de obras e projetos intitulada “Brazil Builds”, que teve lugar em 1943 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, comissariada por Philip Goodwin, com fotos de Kidder-Smith; cujo catálogo, pelo seu efeito de disseminação e reconhecimento institucional, se tornou num ex-líbris da arquitetura brasileira (Figura 1). Seguido, já na década de 50, do livro Modern Architecture in Brazil de Henrique Mindlin, editado em trilingue, que promove e reforça ainda mais a arquitetura brasileira no plano internacional (Figura 2). E claro, o interesse que se seguiu nas publicações de números especiais em revistas de renome como a L’Architecture d’Aujourd’hui, a Forum, ou a The Architectural Review [2], que ao fazerem circular largamente a obra e o papel destes arquitetos, os estabeleceram como figuras incontornáveis do cânone do movimento moderno sul-americano (Figuras 3.1 a 3.6).

Figura 1Brazil builds: architecture new and old, 1652-1942. By Philip L. Goodwin, photographs by G. E. Kidder Smith. MoMA 1943.

Figura 2Modern architecture in Brazil. By Henrique E. Mindlin. 1st edition by Colibris, Rio de Janeiro, 1956. (Em baixo) Edições Especiais da revista L’Architecture d’Aujourd’hui dedicadas à arquitectura moderna Brasileira.

Figuras 3.1 a 3.6L’Architecture d’Aujourd’hui nº 13/14 (setembro 1947); The Architectural Forum (novembro 1947); The Architectural Review (março 1944).

 

Ao mesmo tempo, também as revistas que proliferavam no próprio Brasil e que também circulavam pela Europa e Portugal, tiveram um papel fundamental na divulgação e sedimentação da cultura arquitetónica brasileira, não só a nível nacional como internacional: entre elas está a revista Acrópole (São Paulo), publicada de 1938 a 1971, que documentou uma parte importante da história do crescimento urbano do estado de São Paulo. A revista, fundada por Roberto Corrêa Brito, foi responsável, sobretudo já sob a alçada de Max Grunwald (a partir de 1952), por dar a conhecer alguns dos exemplos mais ilustrativos do modernismo brasileiro e das obras de autores tão diversos como Siegbert Zanettini, Ruy Ohtake, Oswaldo Bratke e Rino Levi (Figuras 4.1 a 4.11).

Figuras 4.1 a 4.11 – Várias edições da revista Acrópole, incluindo números especiais dedicados a Brasília.

 

A revista Habitat, também ela de São Paulo, existiu entre 1950 e 1965, dirigida numa primeira fase por Lina Bo e Pietro Bardi e mais tarde por Abelardo de Sousa e Geraldo Ferraz. É normalmente durante a direção dos primeiros que ela é estudada, por ter sido o seu instrumento privilegiado de ensaio intelectual e artístico. Habitat foi, durante os seus primeiros anos, o veículo do seu olhar externo e inquisidor, capaz de cruzar as ambições modernistas com a produção cultural local, histórica e diversa do Brasil[3] (Figuras 5.1 a 5.3).

Figuras 5.1 a 5.3 – Várias edições da revista Habitat.

 

Também importante foi a revista Módulo, que começou em março de 1955, no Rio de Janeiro, sob a direção do arquiteto Oscar Niemeyer e do engenheiro Joaquim Cardozo, em colaboração com Rodrigo Melo Franco de Andrade, o escritor Rubem Braga e o arquiteto Zenon Lotufo (Figura 6.1 a 6.5). Esta revista teve um percurso mais conturbado, nomeadamente devido à sua sede ter sido invadida e saqueada pelo regime militar em 1965, levando à sua interrupção. Contudo, a revista reaparece mais tarde, voltando a circular entre 1975 e 1989, mas já com outras características. Como o afirma Heliana Angotti-Salgueiro no seu estudo sobre o trabalho do fotógrafo Marcel Gautherot para a revista Módulo: na sua primeira fase os editores e contribuidores da revista viam a arquitetura moderna como “indissociável da afirmação da identidade e cultura nacionais, ao lado não apenas das artes plásticas, mas do património histórico, da arquitetura vernacular, de aspectos da natureza do país, seu folclore, arte popular e outros temas afins.” (Angotti-Salgueiro: 11) Temas que vão dando cada vez mais espaço às reportagens sobre a construção e arquitetura de Brasília, que se tornarão matéria cada vez mais dominante.

Figuras 6.1 a 6.5 – Várias edições da revista Módulo.

 

Estas revistas tiveram, no seu conjunto, o papel de estimular o discurso arquitetónico e de se tornarem elas próprias o lugar do cruzamento de ideias. Os muitos artigos e as diferentes reportagens de obras, não só nacionais, tiveram o duplo efeito de ampliar o repertório das soluções arquitetónicas, com um resultado globalizante, mas também o de solidificar as contribuições disciplinares, conferindo-lhes um maior poder transformativo e uma maior dimensão social.

 

A receção da arquitetura moderna brasileira em Portugal, alguns momentos chave reportados pela revista Portuguesa ARQUITECTURA.

Um dos primeiros eventos de relevo na divulgação da arquitetura moderna brasileira em Portugal é anunciado na revista ARQUITECTURA, 28 de janeiro de 1949, onde se comenta sobre a visita à Europa de um grupo de estudantes Brasileiros, acompanhados pelo professor Wladimir Alves de Sousa, e das respetivas conferências e exposições que tiveram lugar no Instituto Superior Técnico em Lisboa (Figuras 7.1 e 7.2).

Figuras 7.1 e 7.2 – Revista Arquitectura n.º 28 (janeiro 1949)

 

Da conferência encontramos escrito o seguinte: “foi um acontecimento de invulgar interesse no campo das artes plásticas. Embora os arquitetos portugueses já tivessem um conhecimento nítido do valor das atuais tendências da arquitetura no Brasil, através de várias publicações estrangeiras, o assunto ganhou um interesse novo e uma maior objetividade ao ser explicado por alguém que o tem vivido de perto.”  (Arquitectura n.º 28: 26).

Sobre a exposição, acrescentam que foi extensa e salientam o facto de esta incluir não apenas maquetes, fotografias e desenhos, mas também “uma colecção de revistas e publicações, colocadas de forma a permitir fácil consulta.” (Arquitectura n.º 28: 26). Confirmando mais uma vez a importância do documento impresso neste processo de divulgação.

O significado deste evento é reafirmado pelas reações que suscitou e que podem ser vistas já no número imediatamente a seguir (ARQUITECTURA, 29 de fevereiro e março de 1949) numa carta do arquiteto português Formosinho Sanches, comentando a exposição e estabelecendo um paralelo com o panorama português: “É evidente e natural que a Exposição de Arquitetura Brasileira venha a ter reflexo nos espíritos novos e mais acentuadamente, nos alunos de Arquitetura das duas escolas do País. Esse reflexo, dizia, é natural e é bom que não se deixe arrefecer o estado de espírito em que todos ficamos de renovar a nossa Arquitetura” (Figuras 8.1 e 8.2) (Arquitectura n.º 29: 17).

Figuras 8.1 e 8.2 – Revista Arquitectura n.º 29 (fevereiro/março 1949)

 

Este texto demonstra como a exposição levou os arquitetos portugueses a refletirem sobre a sua própria condição, produzindo determinadas expectativas de progresso. Formosinho Sanches manifestava o desejo de encontrar uma nova arquitetura, de carácter mais vanguardista, que fosse capaz de criar uma sociedade melhor. Nesse sentido, Sanches reconhecia nos exemplos vindos do Brasil esse espírito inovador e moderno.

A esta exposição seguiu-se uma segunda, também trazida por Wladimir Alves de Sousa, por ocasião do III Congresso da União Internacional dos Arquitetos – UIA, passado em Lisboa, em setembro de 1953, e publicada no número 53 da revista ARQUITECTURA de dezembro de 1954. De entre os 600 participantes de diversos países, o Brasil foi o único representante do continente Americano, o que demonstra o seu dinamismo a nível internacional e também a sua relevância para o contexto de arquitetos portugueses. Desta vez, a exposição foi apresentada na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa e teve uma conferência de abertura, durante a qual muitos dos materiais trazidos foram amplamente divulgados através de uma extensa publicação de ilustrações e comentários na revista (Figuras 9.1 a 9.7).

Figuras 9.1 a 9.7 – Revista Arquitectura n.º 53 (dezembro 1954)

 

A citação apresentada na comunicação afirma que “entre as manifestações mais notáveis do seu progresso material e do seu nível artístico, o Brasil se orgulha de possuir uma arquitetura compatível com as necessidades do presente e as suas condições peculiares de clima, solo e exigências sociais” (Arquitectura n.º 53: 17). Adicionalmente, é feita uma admiração à “cor, textura, forma e volume” da vegetação tropical, que se faz presente nos jardins criados por Burle Marx, projetos estes que também foram destacados na exposição.

Paralelamente à disseminação das obras construídas, também o pensamento teórico começa a ganhar corpo e a ser divulgado pelos meios de comunicação. Um desses momentos do pensamento da arquitetura brasileira surge um ano antes da segunda exposição, pela mão de Lúcio Costa, no número 47 da revista ARQUITECTURA, de junho de 1953 (Figuras 10.1 e 20.2).

Figuras 10.1 e 10.2 – Revista Arquitectura n.º 47 (junho 1953)

 

No artigo, que fora comissariado pela UNESCO para uma conferência proferida em Veneza e intitulado “O Arquiteto e a Sociedade Contemporânea” Costa discute o conceito de “unidade de habitação”, tal como fora proposto por Le Corbusier e já experimentado no bloco de Marselha. Neste e noutros ensaios, Costa defende afincadamente o papel do arquiteto como agente ativo no desenvolvimento da sociedade contemporânea, cuja habilidade reside no equilíbrio subtil entre considerações técnicas, sociológicas e estéticas para criar soluções de habitação que atendam a uma diversidade de necessidades e condicionantes.

Lúcio Costa aproveita a oportunidade para explorar os limites da disciplina da arquitetura, ao definir quais os diversos fatores que a constituem: o contexto histórico, o ambiente físico e social, as técnicas e materiais disponíveis, e os objetivos do projeto. No texto, Costa argumenta que as inovações na construção moderna permitiram maior liberdade na criação de projetos arquitetónicos, fundindo conceitos anteriormente irreconciliáveis e abrindo novas possibilidades para a expressão artística na arquitetura. Conclui que a evolução da arquitetura é parte de um processo mais amplo de mudança social e económica.

É interessante notar que, entre os textos de Lúcio Costa, este é um dos que acaba por ser publicado em Portugal; um texto onde, para além dos princípios disciplinares, se afirma uma arquitetura de carácter mais universal. Lúcio Costa emerge como um dos principais teóricos do Movimento Moderno, desviando-se de outros seus textos onde tenta estruturar um percurso de modernidade de carácter mais nacional e de conciliação com as tradições locais e históricas, tais como em “O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional” (1929) “Razões para uma Nova Arquitetura” (1934), e “Documentação Necessária” (1937). Textos esses que, retrospetivamente, poderiam ter tido maior ressonância junto dos arquitetos Portugueses, sobretudo os das gerações mais novas.

É nesta escolha entre uma arquitetura de carácter mais universal e outra mais regional que uma divergência aparente emerge nos trajetos de desenvolvimento das culturas arquitetónicas do Brasil e de Portugal. Contudo, esta divergência é, na realidade, ilusória, manifestando-se simultaneamente em múltiplas dimensões e geografias distintas, incluindo a brasileira e portuguesa. Por exemplo, em Portugal, mesmo num contexto de desigualdades profundas e pobreza generalizada, também se sentiam pressões advindas de uma industrialização tardia e dos impactos de uma globalização acelerada que se traduziram em expressões arquitetónicas fora do cânone regionalista [4].

Discussões acerca da preservação do património histórico, o direito à habitação e questões ligadas a novas tecnologias — tais como pré-fabricação, novas topologias, novos programas, novas formas arquitetónicas e diferentes modos de construir a cidade — eram frequentes. Estes temas faziam parte de um conjunto de opções políticas e estéticas contrastantes.

No Brasil, todas essas preocupações são igualmente debatidas, como documentado na revista BINÁRIO desde que esta começa a ser publicada. Curiosamente, a partir desse momento, a revista ARQUITECTURA, até ao seu último número em 1989, demonstrou pouco interesse nos desenvolvimentos arquitetónicos ocorridos no Brasil. Esta prolongada ausência da arquitetura brasileira coincide com o momento em que a arquitetura portuguesa inicia um processo de reavaliação da arquitetura moderna, impulsionada em grande parte por debates frequentemente associados aos congressos CIAM e materializada pela terceira série da revista ARQUITECTURA.

Uma interpretação possível é que os editores de ARQUITECTURA, a partir de meados do século, focaram os seus esforços na busca por uma identidade arquitetónica própria e específica, na qual a cultura arquitetónica moderna brasileira, de grande escala e influência internacional, não tinha lugar.

A exceção notável a esta tendência de desinteresse foi a revista BINÁRIO. Enquanto a ARQUITECTURA relegava o Brasil para segundo plano, a BINÁRIO emergia como uma plataforma que continuava a divulgar o que se estava a produzir no Brasil. Esta dualidade editorial reflete não apenas diferentes orientações dentro da comunidade arquitetónica portuguesa, mas também o complexo intercâmbio cultural e profissional entre os dois países [5].

 

A revista BINÁRIO: Brasília

Em Portugal, a revista BINÁRIO (1958/1977), pelo seu pendor mais internacionalista e pelo seu projeto editorial ser mais apoiado na reprodução de artigos de periódicos estrangeiros, surge como a revista especializada que, desde o final dos anos 50, oferece uma cobertura mais extensa da produção arquitetónica e do desenvolvimento urbanístico no Brasil, inclusivamente através do estabelecimento de parcerias de intercâmbio como foram as Jornadas Luso-Brasileiras de Engenharia Civil.

Tal como pudemos observar nas revistas de grande circulação previamente mencionadas, algumas edições da BINÁRIO são dedicadas inteiramente à arquitetura brasileira, mais especificamente a Brasília (Figuras 11.1 e 11.2). As edições BINÁRIO 22 (julho de 1960) e BINÁRIO 126 (março de 1969) relatam extensivamente sobre as grandes construções da nova capital e incluem mais uma vez textos de Lúcio Costa e de Niemeyer, respetivamente.

Preocupações raras, demonstrativas de experiência e de espírito de inovar.

Figuras 11.1 e 11.2 – Revista Binário n.º 22 (julho 1960) e Binário n.º 126 (março 1969)

 

É importante salientar também aqui que o interesse dos editores não se restringia apenas a Brasília; outras importantes intervenções urbanas foram também destacadas na revista BINÁRIO, como o arranjo costeiro de Copacabana na edição 92 (maio de 1966), o plano para a Barra da Tijuca de Lúcio Costa na edição 135 (dezembro de 1969), entre outros.

No que diz respeito ao caso paradigmático de Brasília, é pertinente explorar o seu significado e analisar mais de perto o material da época. É neste primeiro número especial sobre Brasília que aparece mais um dos importantes textos de Lúcio Costa, desta vez sobre arte e arquitetura e a necessidade de educar as massas nesta matéria. No texto, chamado “A arte e a educação”, Lúcio Costa aborda principalmente a relação entre a arte e a sociedade na era industrial. (Figura 12) Para Costa, embora a revolução industrial tenha introduzido novas formas de registar, reproduzir e disseminar a arte, também desestabilizou a ordem social, criando um público diversificado com variados níveis de entendimento e apreciação da arte. Costa sugere que o problema das artes é sobretudo um problema económico-social e que a solução depende da resolução dessa questão fundamental.

Figura 12 – “A arte e a educação”, de Lúcio Costa. Revista Binário n.º 22 (julho 1960).

 

É nesse sentido que destaca a importância de educar as massas nas diversas áreas artísticas, uma visão alinhada com o projeto político mais amplo de criação de um estado social. Um projeto que durante algumas décadas foi capaz de atenuar as desigualdades que tinham prevalecido até então através de processos de acesso a bens básicos como a educação e a saúde, que garantiram alguma movimentação social.

Lúcio Costa via este projeto como sendo o processo natural de desenvolvimento resultado da revolução industrial, onde o papel da arquitetura e do arquiteto na sociedade seriam cruciais.

Ainda que a sua visão possa ser considerada elitista, pelo arquiteto tomar nela uma posição de relevo, e apesar de acreditar que, numa primeira fase de massificação industrial, existiria uma desvalorização inevitável da arte, a acessibilidade desta pelas massas era um passo fundamental para a elevação igualitária da sociedade no seu conjunto e a conclusão lógica do processo iniciado pela revolução industrial.

Também parte da mesma visão progressista é o pequeno texto de Niemeyer sobre Brasília “Uma Cidade para Homens” publicado na BINÁRIO 126 (março de 1969), onde este se queixa da falta de esforços em terminá-la e humanizá-la (Figura 13). Niemeyer escreve:

“É claro, igualmente, que desejaríamos senti-la humanizada, mas isso no sentido exacto do verbo, dando a todos os seus habitantes, sem discriminação de classe, as mesmas possibilidades de uma vida feliz. Infelizmente, não é esse o significado que dão ao termo «humanizar»… Mas é útil que falem em humanizar a nova Capital, pois nos permitem corrigir um engano, convocando-os para os movimentos progressistas que combatem a miséria, o privilégio e a deseducação, visando à sociedade melhor que parecem desejar. Nesse dia, Brasília será a cidade humana e acolhedora que Lúcio Costa previu.” (NIEMEYER, 1969: 474)

Visto por uma perspetiva histórica e contemporânea, é interessante salientarmos que tanto Lúcio Costa como Oscar Niemeyer pareciam, através destes seus textos, mesmo com todo o seu idealismo social, mais interessados no termo da obra enquanto objeto artístico finito e perfeito do que numa arquitetura/processo de desenvolvimento aberto e indefinido. Uma contradição aliás evidente também na própria publicação quando, no mesmo número em que estes se preocupam com as favelas de Brasília, podemos ver extensivamente publicados os projetos das embaixadas com toda a sua representatividade que lhe está associada.

Figura 13 – “Uma Cidade para Homens”, Binário n. º 126 (março de 1969).

 

Os textos de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer oferecem uma visão complexa e por vezes contraditória do que Brasília poderia e deveria ser. Eles refletem as tensões entre a arte e a sociedade, o ideal e o real, a obra fechada e o processo contínuo, tensões que ainda hoje suscitam debates e reflexões. Assim nos chega a este lado do Atlântico, através da BINÁRIO, a visão crítica de dois dos seus mais importantes protagonistas, através da qual podemos reconsiderar os projetos e as utopias arquitetónicas e sociais que definiram uma era.

 

A revista BINÁRIO: As Jornadas Luso Brasileiras de Engenharia Civil e o Papel do editor Anibal Vieira

É devido à força de expansão e desenvolvimento representada por Brasília que em grande parte se gera esta atração gravitacional do Brasil e que leva a que se criem as primeiras jornadas luso-brasileiras de engenharia civil ao abrigo do Acordo de Cooperação Intelectual entre o Brasil e Portugal [6]. Esta iniciativa acompanhou um acordo de cooperação económica e teve o apoio dos respetivos Presidentes da República, envolvendo diferentes ministérios do governo (no caso de Portugal, dos ministérios da Cultura e do Ultramar), bem como a atribuição de comendas e de visitas de estudo [7] (Figura 14).

Figura 14 – “Declaração sobre Cooperação Económica entre Portugal e o Brasil”, Binário n.º 112 (Janeiro 1968).

 

Este intercâmbio levou a uma colaboração regular entre os impulsionadores destes eventos e a imprensa especializada, com vários artigos e apresentações a serem trocados e publicados em diversas revistas. Começando no caso português com a publicação na BINÁRIO 24 (setembro de 1960) do texto da sessão inaugural das jornadas, assinado pelo Engenheiro Manuel Rocha, à época o diretor do LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil Português (Figuras 15.1 e 15.2). E prosseguindo, mais tarde, com as segundas jornadas, que tiveram lugar no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, apresentadas conjuntamente com algumas das apresentações dos colegas brasileiros, nomeadamente do Engenheiro Mauro Ribeiro Viegas, professor catedrático da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no número 108 da revista BINÁRIO (setembro de 1967) (VIEGAS, 1967:136-140) (Figuras 16.1 a 16.4).

Figuras 15.1 e 15.2 – Revista Binário n.º 24 (setembro 1960).

 

Nestas jornadas tiveram lugar inúmeros debates sobre os mais variados temas, entre eles: Grandes Infraestruturas (barragens, portos, estradas, etc.); Habitação; Estruturas de Edifícios; Planos de Desenvolvimento Integrados de Cidade ou de Regiões; e Ensino e Investigação. Nas análises publicadas conseguem-se deslumbrar entendimentos cada vez mais complexos e cada vez melhor fundamentados destes temas, inclusivamente noções de um urbanismo mais distendido no tempo, que graças à experiência da construção de Brasília, cujas frustrações expressas por Lucio Costa e Niemeyer, expostas acima, começavam a ser investigadas e/ou adotadas.

Figuras 16.1 a 16.4 – Revistas Binário n.º 108 (setembro 1967) e Binário n.º 112 (janeiro 1968).

 

Outra prova deste aprofundamento teórico foi também o estudo desenvolvido pelo editor da revista BINÁRIO, e um dos principais impulsionadores das jornadas, o Engenheiro Aníbal Vieira, no número especial BINÁRIO 53 (fevereiro de 1963). Resultado de várias viagens de Vieira, inclusive ao Brasil, onde ele expõe 98 “conceitos e tendências atuais em urbanização.” (Figuras 17.1 a 17.4)

Figuras 17.1 a 17.4 – Revista Binário n.º 53 (fevereiro 1963).

 

Esta edição especial espoleta um diálogo, publicado mais tarde no número BINÁRIO 69 (junho de 1964), com um texto do Engenheiro Arquiteto Carlos Lodi[8], primeiramente publicado na revista ENGENHARIA de São Paulo (LODI, 1963: 504 – 505), onde este resume o estudo de Aníbal Vieira e compara-o pontualmente com o desenvolvimento urbano da cidade de São Paulo[9]. Este diálogo continua com outros textos de Lodi [10], mas também de outros autores brasileiros e portugueses, advindos em grande parte das jornadas, mas também de outros encontros onde se discutiam, entre assuntos mais técnicos[11], os problemas do urbanismo à luz do progresso tecnológico, bem como das carências físicas e sociais provenientes desse mesmo progresso.

Este intercâmbio continua a ser reforçado gradualmente, inclusivamente com a participação de Aníbal Vieira no planeamento de Nova Iguaçu (noticiado na BINÁRIO 141, junho 1970); ou com o Plano Municipal de Ouro Preto pelo arquiteto português Alfredo Viana de Lima (anunciado na BINÁRIO 152, maio 1971). E também em textos que, por exemplo, são cada vez mais críticos das propostas modernistas em geral e de Brasília em particular[12].

Pelo menos enquanto a BINÁRIO é publicada (a revista cessou em 1977), este intercâmbio parece ter existido, em grande parte graças ao esforço e ao interesse do editor Aníbal Vieira. Contudo, ele surge num contexto em que, apesar da abertura provocada pelo fim da ditadura em 1974, a arquitetura acaba por se fechar cada vez mais no seu próprio campo disciplinar. Este fenómeno torna a disciplina mais insular e autorreferencial, algo que se reflete claramente nas revistas da especialidade.

Portanto, não é surpreendente encontrar observações como as expressas por Tânia Beisi Ramos e Madalena Cunha Matos no seu artigo “Recepção da Arquitetura Moderna Brasileira em Portugal – Registos e uma Leitura”. Segundo elas, a partir de meados da década de 70, verifica-se “um lento afastamento, [resultando] numa invisibilidade da arquitetura brasileira contemporânea” (p. 17) por parte dos arquitetos portugueses. Na verdade, o final da década de 70 trouxe mudanças radicais não só à sociedade portuguesa, mas também ao mundo inteiro. Foram anos marcados por uma crise económica, realinhamentos geopolíticos decorrentes do fim da Guerra Fria, a ascensão do neoliberalismo e da cultura individualista — fortemente promovidos por Thatcher e Reagan — e a omnipresença do computador pessoal, entre outras transformações significativas. Paralelamente, houve também um deslocamento de paradigmas na própria arquitetura. Estas mudanças alteraram a natureza dos momentos de intercâmbio, que, mesmo se tornando cada vez mais pontuais, continuaram a existir[13].

As profundas transformações na cultura arquitetónica de Portugal e Brasil durante a segunda metade do século XX têm levado a um aumento da consciencialização e da historização dos momentos mais relevantes do desenvolvimento arquitetónico em ambos os países. O estudo de Beisi Ramos e Cunha Matos é disso exemplo. Este aspeto contribui para o reconhecimento mútuo da importância de compreender melhor o diálogo e a coexistência da arquitetura moderna em cada país e na respetiva relação transatlântica. É neste cruzamento que, através de novos levantamentos, investigações e publicações, podemos continuar a aprofundar as contribuições singulares e as sobreposições pontuais entre estes dois contextos e o panorama global da produção arquitetónica.

Em resumo, o diálogo arquitetónico e urbanístico entre Brasil e Portugal, tal como documentado nas revistas ARQUITETURA e BINÁRIO, até finais dos anos 1980, revela a coexistência de diferentes perspetivas intelectuais e políticas em ambos os países. Enquanto ARQUITETURA ficou conhecida por apostar numa abordagem que enfatizava uma identidade arquitetónica de carácter mais regional e social, a BINÁRIO apresentou uma visão mais neutra e internacional, onde existiu espaço para a divulgação da arquitetura brasileira. Este dualismo editorial não só ilustra as diferentes orientações dentro da comunidade arquitetónica de Portugal, como também reflete as complexidades do intercâmbio cultural e profissional entre Brasil e Portugal.

A visão de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer sobre Brasília, publicada na BINÁRIO, oferece-nos um espelho através do qual podemos avaliar as tensões inerentes entre a teoria e a prática, o ideal e o real, o global e o local. A sua obra e pensamento continuam a ser um valioso património para futuras gerações de arquitetos, urbanistas e teóricos, lembrando-nos das ambiguidades e desafios que caracterizam a prática arquitetónica e urbanística.

As Jornadas Luso-Brasileiras de Engenharia Civil e a contribuição do editor Aníbal Vieira para a revista BINÁRIO reforçam o papel crucial das plataformas de diálogo e colaboração na formação da arquitetura e do urbanismo contemporâneos. Estas iniciativas não apenas fomentaram o desenvolvimento teórico e prático em ambas as nações, como também serviram para estreitar laços culturais e intelectuais entre Brasil e Portugal.

No cerne deste intercâmbio está a questão permanente sobre como as diferentes modernidades presentes nestes dois hemisférios foram repletas de nuances e complexidade, uma questão que, dadas as atuais urgências ambientais e os desafios sociopolíticos, continua relevante e por resolver. Este é, sem dúvida, o legado mais duradouro destas publicações e discussões: uma lembrança de que a busca por soluções em arquitetura e urbanismo é um processo contínuo de negociação entre diversas forças, perspetivas e contextos.

 

Bibliografia

III Congresso da União Internacional dos Arquitetos – UIA, e Exposição de Arquitectura Contemporânea Brasileira. Arquitectura, Lisboa, n. º53, dezembro 1954, p. 9-22.A Visita dos Estudantes Brasileiros de Arquitectura. Arquitectura, Lisboa, nº28, janeiro 1949. Secção comentários, p. 26.

ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana – Marcel Gautherot na revista Módulo – ensaios fotográficos, imagens do Brasil: da cultura material e imaterial à arquitetura. Ed.  Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 22. n.º1,  jan.- jun. 2014, p. 11-79.

Binário, Lisboa, n.º 22, julho de 1960 (número especial dedicado a Brasília).

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Notas

 

  1. Em Portugal, esta história chega-nos através da revista BINÁRIO, números 37 e 38 (outubro e novembro de 1961, respetivamente), contada num extenso artigo escrito por Frances Stahl, intitulado “Forças de Formação da Arquitetura Americana Contemporânea,” onde descreve precisamente as várias contribuições que fizeram parte deste êxodo. Stahl identifica no seu artigo um percurso de continuação linear histórico, numa lista de arquitetos cujo vocabulário arquitetónico estava a ser desenvolvido na América. Entre os perfis publicados no artigo encontram-se os arquitetos: Richard Neutra, Mies Van Der Rohe, Victor Gruen, Edward Stone, Eero Saarinen, Minoru Yamasaki, I.M. Pei, e, na segunda parte, Paul Rudolph e Victor Lundy. Outro estudo aprofundado que demonstrou a influência da arquitetura dos EUA foi o ensaio de Raul Hestnes Ferreira, publicado em duas partes na ARQUITETURA 91, janeiro/fevereiro de 1966, e na ARQUITETURA 98, julho/agosto de 1967. A primeira parte intitulava-se “Algumas Reflexões sobre a Cidade Americana”, e a segunda “Aspectos e Tendências Actuais da Arquitetura Americana”, respetivamente. Tal como Stahl, Hestnes estabeleceu uma comparação histórica dos diferentes caminhos seguidos pelos arquitetos americanos em relação aos europeus, avaliando simultaneamente os contributos únicos dos arquitetos mais proeminentes. Na América, falou de Wright, com os seus desenhos individuais e a sua expressão orgânica, bem como a sua própria abordagem da cultura tradicional americana; escreveu sobre Sullivan e a sua visão clássica e funcional da cidade; sobre Mies, cuja prática, na sua opinião, não evoluiu para além do refinamento do seu próprio repertório. Enquanto que na Europa, disse, os processos de renovação arquitetónica foram acelerados pela capacidade de reinvenção de Le Corbusier, ou graças às contribuições do grupo C.I.A.M., entre outros.
  2. Números da LArchitecture dAujourdhui dedicados à arquitetura brasileira: nº 13-14, setembro de 1947; nº 42-43, agosto de 1952; e nº 90, junho de 1960. Da revista Forum temos o número de novembro de 1947 e da Architectural Review o de março de 1944.

  3. STUCHI, Fabiana Terenzi – Revista Habitat: um olhar moderno sobre os anos 50 em São Paulo. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, 2007.

  4. No meio de desigualdades muito marcantes e de grande pobreza, Portugal viveu, entre finais da década de 1950 e meados da década de 1970, uma mudança significativa. O rápido crescimento económico do país foi alimentado pelo atraso na industrialização, preparando o terreno para as aspirações económicas e para os desenvolvimentos arquitetónicos que se seguiram. Esta dupla natureza da época foi espelhada de forma vívida nas páginas da ARQUITETURA, que captou a evolução arquitetónica e urbana do país contra o pano de fundo das suas mudanças sociais mais amplas. A revista não só detalhava as manifestações tangíveis das ambições económicas de Portugal, como se pode ver nos seus desenvolvimentos infraestruturais e de serviços, mas também funcionava como um recipiente para as discussões mais abstratas sobre filosofias de design, de ensino, aspirações sociais e críticas com que os arquitetos do país se debatiam.

  5. Tal como Miguel Cardina nos explica no livro “O Século XX Português” (2020) existe também o fenómeno relativo aos países com um passado colonial, que advém de feridas históricas, e provoca no pais colonizador casos recorrentes ou de amnésia, ou de desinteresse preconceituoso relativamente ao país colonizado. Salvo raras exceções, em todo o período de vida da revista ARQUITETURA – uma das poucas e principais revistas da especialidade em Portugal – é notória a ausência de artigos sobre a arquitetura brasileira, tal com também é estranha a ausência sobre a arquitetura das e para as colónias portuguesas que em meados do século XX ainda se encontravam sobre administração Portuguesa. Esta negligência, da qual ARQUITETURA foi sem dúvida parte, aparece também descrita no livro “Cidade e Império. Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Pós-Coloniais” de Nuno Domingos e Elsa Peralta (Edições 70, 2013).

  6. Este Acordo foi seguido mais tarde por uma declaração sobre cooperação económica entre Portugal e Brasil, assinada por Franco Nogueira (Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal) e Juracy de Magalhães (Ministro das Relações Exteriores do Brasil) em Lisboa, no dia 7 de setembro de 1966 (ver BINÁRIO 112, janeiro de 1968, página 41). Este acordo previa a facilitação da implementação de parcerias empresariais luso-brasileiras, ou do estabelecimento de empresas entre ambos os países, nomeadamente para a exploração de recursos mineiros e afins. Outros acordos foram estabelecidos entre o LNEC (Portugal) e as universidades do Rio de Janeiro e a de Brasília, levando ao intercâmbio entre professores engenheiros, como o demonstra a reportagem publicada ainda em BINÁRIO 112, página 45, sobre as aulas proferidas pelo professor brasileiro Anderson Moreira da Rocha no LNEC.

  7. O Embaixador Negrão de Lima atribui a Comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul, agraciada pelo Presidente do Brasil ao Engenheiro Manuel Rocha. As primeiras jornadas que tiveram lugar em Lisboa foram seguidas de uma visita de estudo ao Norte do País, patrocinada pelas Hidro-Eléctricas do Zêzere, do Cávado e do Douro. Dos participantes brasileiros, são mencionados os seguintes elementos: Eng.º Telémaco van Langendonck (Professor da Politécnica de S. Paulo); Professor Engenheiro Maurício Joppert da Silva (que não pôde estar em Lisboa); Professor Engenheiro Paulo Sá (Presidente da Comissão Organizadora Brasileira); Professor Engenheiro Mário Brandi Pereira; e Professor Thiers Martins Moreira.

  8. Carlos Lodi era engenheiro e arquiteto-urbanista. Foi presidente da Federação Brasileira de Habitação e Urbanismo, director do Departamento de Urbanismo da Prefeitura de São Paulo e membro honorário do Town Planning Institute of London.

  9. Os pontos levantados referiam-se: i) à questão da necessidade de planear São Paulo seguindo planos de desenvolvimento regional; ii) ao problema de ainda não se adoptar em São Paulo um regime de planeamento aberto; iii) à necessidade de prover São Paulo de mais avenidas perimetrais perto do centro (de acordo com o novo modelo linear e não concêntrico, como era normalmente o desenvolvimento das zonas centrais); iv) à urgência de promover uma renovação dos processos e dos órgãos de planeamento urbano de São Paulo. (Lodi, Carlos, Página 375, BINÁRIO 69, junho 1964).

  10. Por exemplo, Lodi contribuiu no número BINÁRIO 85 (outubro de 1965) com um texto para as segundas jornadas luso-brasileiras que, entretanto, tinham sido canceladas. O texto foi intitulado “A necessidade da expansão regional e da organização permanente no planeamento das grandes cidades” (p. 994-997).

  11. Por exemplo, Aníbal Vieira escreve na BINÁRIO 176 (maio de 1973) um texto muito interessante sobre o modo como o Brasil conseguiu controlar um período de enorme inflação (1961-1971) com medidas de controlo e correção monetárias extremamente ágeis. Estas incluíram a flexibilização das taxas de câmbio, ajustes temporários de preços e, sobretudo, de salários, que ajudaram grande parte da população a enfrentar taxas de juro que chegaram aos 100% anuais em 1964 e que seriam hoje impensáveis dada a ortodoxia do pensamento político neoliberal.

  12. Por exemplo, Dieter Hannemann escreve em BINÁRIO 194 (novembro de 1974) o texto “Brasília – Arquitetura «Fascista»?”. Nele, critica Niemeyer por ter sacrificado a escala humana, ao conceber demasiados eixos de simetria e optar pela monumentalidade, estabelecendo mesmo um paralelo com a arquitetura do 3.º Reich. A crítica inclui ainda a observação de que, em muitos destes projetos, nem mesmo a função se adequa à forma, algo que é corroborado pelo próprio Niemeyer numa das suas entrevistas publicadas na BINÁRIO 208 (maio de 1976), onde afirma: “Deliberadamente contrariamos princípios, se a isso a fantasia nos conduzir.”

  13. Dentre os exemplos notáveis dessa interação, destaca-se o período de exílio do arquiteto português Conceição Silva no Brasil, cujo trabalho foi objeto de uma retrospetiva na revista ARQUITETURA 150, em julho/agosto de 1983 (4ª série). Recentemente, projetos como o do Museu dos Coches em Lisboa, assinado pelo arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, e o Museu Iberê Camargo em Porto Alegre, de Álvaro Siza, ressaltam essa conexão bilateral. Também digno de nota, e potencialmente polémico, é o enriquecimento do acervo da Casa da Arquitetura de Matosinhos com obras de arquitetos brasileiros, que culminou na exposição “Infinito Vão – 90 Anos de Arquitetura Brasileira” em 2019.