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Ricardo Carvalho

rcarvalho@autonoma.pt

CIEBA – Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes. CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal

 

Inês Lobo

ineslobo@ilobo.pt

CIEBA – Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes. CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal

 

Para citação:

CARVALHO, Ricardo; LOBO, Inês – Lisboa: Resiliência e Vulnerabilidade. Reflexões em torno da cidade do pós-Abril. Introdução ao dossier. Estudo Prévio 25. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, dezembro 2024, p. 162-164. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/25.6

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Lisboa: Resiliência e Vulnerabilidade. Reflexões em torno da cidade do pós-Abril. Introdução ao dossier.

 

A cidade é o lugar onde cultura e tecnologia, homem e natureza, se encontram e geram uma possibilidade de bem comum. É, ainda hoje, o lugar da promessa e do confronto, da coesão e da proteção, mas também da instabilidade e exclusão. O que prevalece sempre é o seu enorme potencial e capacidade de se aperfeiçoar.

Esta ação ganhou no último século uma complexidade que coloca o tema da cidade para além da sua força fundacional. Trata-se, eventualmente, do mais determinante tema de arquitetura e urbanismo do mundo contemporâneo – a capacidade de gerar lugares para a vida pública.

Estima-se que no ano de 2050, 75% da população mundial estará concentrada em cidades. Mesmo em cidades europeias, de lenta e coesa evolução morfológica, como é o caso de Lisboa com a sua matriz romana, islâmica, iluminista e um século XX que exponenciou o seu crescimento moderno, coloca-se hoje a pergunta a quem pensa a cidade: o que gera a resiliência e onde reside a vulnerabilidade?

A vida nas cidades europeias conheceu sempre a tensão entre a condição física do construído e os padrões de vida de rápida transformação. Lisboa enfrentou esse tema com particular intensidade na segunda metade do século XX. A sua expansão para o território a Norte, com projetos de inspiração internacional (Alvalade, Olivais e Chelas), provocou um abandono progressivo do centro. Este abandono foi ainda mais agravado com a mancha difusa, o sprawl, da área metropolitana, composta por ações dispersas de ocupação, sem qualquer ambição sistémica para além das conexões rodoviárias. Este facto gerou uma população quantitativamente dominante nas periferias urbanas. Como consequência, a partir da década de 1960, uma nova forma de vida pública e a renovação geracional passaram a acontecer distante do centro.

Para definir um perfil de uma cidade será necessário participar do diálogo e do confronto entre a cultura urbana, ou seja, os padrões de vida, e a cultura urbanística, aquela que rege a condição física do construído. A cultura urbana incorpora toda a complexidade e variação próprias de cada momento da cidade, das suas crises e aspirações, enquanto que a cultura urbanística resulta de uma visão política que estrutura um território e recorre a instrumentos de planeamento.

Por vezes, estas duas culturas estão em conflito e esse facto gera um perfil de cidade instável, dissociando a vida da forma da cidade, um fenómeno comum nos territórios onde existe menor capacidade de trabalhar os equipamentos e os espaços públicos. O conflito acontece também quando uma cidade incorpora os fluxos globais, sujeitos ao domínio do investimento privado, onde a noção de espaço se reduz ao espaço económico. Aqui, a forma e a vida urbana divergem.

Lisboa, na sua contemporaneidade, parece ter assumido uma capacidade de compromisso entre forma e vida urbana, talvez porque os instrumentos de planeamento se flexibilizaram procurando o caso específico e a resposta concreta a um problema ou possibilidade. Lisboa caracteriza-se por ser uma cidade onde a forma histórica chegou à contemporaneidade de um modo estruturante, referencial e habitável. Existem, contudo, vários territórios e tecidos sociais que poderão ser objeto de uma transformação positiva e que devem constar numa nova estratégica.

A resiliência significa que não há extinção – significa que uma cidade não se tornou arqueologia. O incêndio do Chiado, em 1988, permitiu voltar a olhar para essa cidade e contrariar a perda de usos mistos e de vida pública. Com o projeto de Álvaro Siza voltou a ser possível ambicionar ocupações heterogéneas. A intervenção de Álvaro Siza reprograma os conteúdos do espaço interior dos quarteirões e dos edifícios – ou seja, as conexões do espaço público e os novos programas mistos. Foi nos últimos anos, desde 2009, que os resultados desta visão e o seu legado se tornaram visíveis para os cidadãos. Apesar disso, vulnerabilidade é um dado presente. Nesse sentido, é sempre necessário garantir os valores do bem comum face às vicissitudes da economia.

O turismo parece ser a via privilegiada da retoma económica – mas esse é um caminho de regresso à monofuncionalidade dos ciclos anteriores e a uma artificialidade no confronto entre o nós e o outro. A indústria do turismo, se não for monitorizada, conduz a equívocos sobre a identidade de um lugar – e a identidade apoia-se naquilo que é herdado, mas está em contínua reelaboração. Mas, apesar da qualificação do espaço público, o perigo de destruição da vida real é a principal ameaça às comunidades. A vulnerabilidade de Lisboa está no facto de este processo ter encontrado um centro histórico em espera, disponível para uma monotematização da sua estrutura urbana. Onde antes existia pouca heterogeneidade é fácil fixar a absoluta homogeneidade.

A vulnerabilidade reside também no facto de Portugal estar numa situação de crise social onde o trabalho foi desvalorizado, onde a opinião pública encontra dificuldades de participação. Nesse sentido, qualquer crise pode conduzir a política a uma mera técnica de gestão de forças de mercado, abandonando a sua capacidade de lançar reptos com a devida contribuição das várias áreas de quem pode pensar a cidade. O desafio passa pela contribuição dos arquitetos, e de outras áreas do conhecimento, para uma forma de pensar a reutilização, programas e estratégias que possam gerar significados coletivos. Este trabalho passa pela política capaz de fazer política afirmando, ou continuando a afirmar, a iniciativa privada e, em simultâneo, o domínio do público e do bem comum – escolas, centros de dia, residências de estudantes e habitação de interesse social. A vulnerabilidade maior é um processo de consumo e extinção.

Foi a partir destas inquietações que desafiámos um conjunto de pensadores, de várias áreas, para nos darem as suas visões sobre o momento de encruzilhada em que se encontra a Cidade em Portugal, 50 anos depois do 25 de Abril de 1974. Partimos de um ensaio visual do fotógrafo Duarte Belo, uma viagem de quem percorre, a passo, uma realidade em mudança, sem nunca deixar de refletir sobre o antes e o depois. Pedro Trovão do Rosário fala-nos das mudanças legislativas, espelho de uma democracia que tem vindo a amadurecer, que Ana Brandão percorre, do ponto de vista da transformação do território. Maria Matos Silva e Ana Beja da Costa ajudam-nos a compreender como as mentalidades também se transformam, quando falamos de espaços verdes e espaços públicos, do ponto de vista da arquitetura paisagista. Por fim, terminamos com uma conversa entre a antropóloga Filipa Ramalhete e os geógrafos Margarida Pereira e Gonçalo Antunes – um debate sobre meio século de vida urbana em Portugal.

Esperamos, com este dossier, contribuir para adensar e enriquecer uma reflexão que todos os que vivem na cidade e gostam dela devem fazer – para que a Arquitetura, em colaboração com outras disciplinas consiga dar respostas cada vez de melhor qualidade aos desafios, crises e vulnerabilidades da cidade do pós-Abril.