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Duarte Belo

dvartebelo@gmail.com

Trabalhador independente e desinstitucionalizado

 

Para citação:

BELO, Duarte – A velocidade da utopia. Ensaio Visual. Estudo Prévio 25. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, dezembro 2024, p. 182-222. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/25.EV

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

A velocidade da utopia

 

 

Percorremos as ruas de uma qualquer cidade portuguesa. Há edifícios de várias épocas históricas. Fazemos fotografias do espaço e do tempo. Não é fácil interpretar a realidade. Há evidentes contradições, paradoxos espaciais. É importante, creio, alhearmo-nos de juízos de valor, de qualificações, de procurar adjetivos que façam distinções supérfluas sobre as arquiteturas. Do solo emana a permanência. Há um desenho urbano que fica desde a origem da cidade. Os edifícios vão sendo intervencionados, abandonados, derruídos, reconstruídos, mas no solo permanece o vazio das linhas de comunicação que uniam todas as construções. Na descodificação dessas linhas, tão difíceis de interpretar pela fotografia, está a ponte que nos liga a um passado muito recuado. Aí fica a maior singularidade das cidades, a sua marca identitária, o aconchego de humanidade a uma topografia pré-existente. É o princípio da utopia.

Há o desejo de estar, de conhecer, de fotografar todas as cidades. Mas o que nos devolve esse movimento sobre cada cidade contínua e ilimitada? Há um conjunto de imagens cada vez maior. Há um arquivo que cresce, que deseja ser o espelho, tornar acessível uma visualidade multidimensional tão difícil de captar. Criar novas camadas de realidade, quando a fotografia deixa de ser imagem para integrar o fluxo do espaço-tempo.

Há dureza neste exercício, uma certa devassa de territórios alheios. Entramos dentro de mundos estranhos, que não se revelam diretamente. Espaços domésticos, não sendo de intimidade, não são visitados por estranhos. Esta é uma viagem que desvela o avesso dos lugares. Ora descuidados, ora em frentes desenhadas. A ordem que procuramos já não é aquela que nos mostram os nossos olhos quando percorremos as mais recentes e periféricas ruas, numa cada vez maior densidade toponímica, como outra camada de urbanidade.

O pensamento das cidades é como caminhar, desenhar, escrever, construir. O princípio e o fim, simultâneo, de um desejo de povoamento. Entropia em exercício e, nesse sentido, uma vertiginosa viagem que percorre hoje, todos os tempos da vida, da história, do lampejo de um planeta raro. Aceleração desintegradora, fértil ou mortal, do viajante mais ousado. Espreitar abismos incógnitos com sonhos de regresso. Escrever um relato de impossibilidades. Uma peça de arte, poema, sobre os escombros velados da mais antiga cidade, sob os nossos pés. Chão denso, lido pelo ideário da liberdade.

A velocidade da utopia é o progressivo desejo de entendimento dos lugares, como um paraíso imaterial que podemos alcançar. Ao mesmo tempo que nos aproximamos desse desígnio, deixamos um rasto de informação cada vez mais denso, uma imagem cada vez mais complexa, como sucessivos estratos geológicos de rochas sedimentares. Vivemos neste jogo-diálogo progressivamente intrincado. Tudo o que fazemos à procura de estabilidade parece resultar no seu contrário. Adversidade à procura de um equilíbrio pontuado. Um movimento em que queremos questionar, ou mesmo abandonar, os modelos de conhecimento do passado, da interpretação da vida e do Universo, e mergulharmos plenamente nesse fascinante movimento entrópico. Olhar que se transforma em conhecimento. E o conhecimento é um modo de arquitetura desmaterializada. Uma casa, um bairro, uma cidade inteira que toca sempre um próximo lugar. Esta é a história da vida em que a primordial Natureza intacta, pré Homo sapiens, se une à maior cidade, num contínuo e único, errático, processo evolutivo-criativo.

Desenvolver um atlas visual urbano, como se pudesse ser a tradução de todo o saber humano, que se desdobra de forma ilimitada. As cidades são um imenso e interminável puzzle, dinâmico, em permanente interação com o mundo. Cada imagem é um fragmento da realidade, codificada, que sucessivamente se desmultiplica noutras representações, noutros conceitos, noutras possibilidades de arquitetura. Há um jogo estranho de perda contínua. Procuramos a ordem, mas geramos cada vez mais entropia. A utopia de uma cidade plena, equilibrada, onde o tempo desacelera, onde restabelecemos laços primordiais com a origem. Mas nada disto existe. As cidades são organismos biológicos, que respondem às mesmas leis da vida, da matéria-energia do Universo. O que se passa na Terra, é um processo evolutivo, contínuo e aleatório, em que uma espécie, Homo sapiens, conquista, lentamente, uma grande vantagem competitiva sobre todas as outras e se afirma como forte condicionador do tempo breve que se segue.

Procurar um espaço de liberdade, distanciamento sobre todo o processo evolutivo, orgânico. As cidades como síntese da laboração da vida. A arquitetura como a experimentação do futuro. O desenho mediado, projeto, que é introduzido pela tecnologia, é uma notável invenção da vida. Há uma ligação entre a arte, a produção sensível, e a ciência. Quando tudo é a mesma coisa, longe das diferenciações introduzidas pelas categorias epistemológicas. A expressão de uma verdade que nos permite a esperança, a abertura ao futuro. O conservadorismo é uma forma de desistência do amanhã, é temer uma inevitabilidade, em oposição a todo o jogo que nos trouxe ao presente. Aleatoriedade, uma enorme densidade de imprevistos, erros, experimentação permanente de todas as possibilidades. Para lá de um oceano de escuridão.

Neste vórtice, com o vento forte no rosto, olhamos para trás. Apenas tentamos, agora, entender o presente, ao observarmos a rua do passado. Na história geológica e biológica do planeta que habitamos, que outra invenção haverá que nos permita um momento de tranquilidade, interromper a aceleração do presente? Retomo o caminho, deixando para trás uma clareira, um abrigo esporádico. Pela frente, uma viagem interminável. Iniciada há quatro mil milhões de anos, com as mais simples moléculas orgânicas, quando teve início o mais complexo fenómeno conhecido no Universo: a vida. Uma viagem concreta que se ergue da terra, de uma imensa curiosidade pelo conhecimento do labirinto que habitamos. Não é necessário procurar longe de casa, em geografias distantes, a velocidade da utopia.

 

 

Nota final

Mais do que uma férrea disciplina metodológica, em que de fontes bibliográficas construímos o discurso, este texto foi esboçado em cadernos de escrita na madrugada. Palavras se erguem de um conjunto de referências indeterminadas, de leituras fragmentadas e indisciplinadas, de música, pedaços de filmes, conversas esparsas em quotidiano imprevisível. Qualquer tempo, qualquer lugar. Toda a terra antes das cidades. Frases que afloram à superfície de um conjunto de mais de 150 000 fotografias feitas neste ano de 2024, à procura das 159 cidades portuguesas. São fotografias recentes que integram um arquivo mais vasto, que, de um território reduzido, o espaço hoje Portugal, reflete um planeta inteiro. Imagens e palavras de pensamento. Peças de um imenso puzzle, fugidio e célere, de que estaremos longe de vislumbrar uma imagem coerente.

Figura 1

Figura 2

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Figura 30

Figura 31

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Figura 33

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Figura 35

Figura 36

Figura 37

Índice

 

Figura 1 – Portimão, 2024

Figura 2 – Amarante, 2024

Figura 3 – Penafiel, 2024

Figura 4 – Barcelos, 2024

Figura 5 – Esposende, 2024

Figura 6 – Viana do Castelo, 2024

Figura 7 – Valença, 2024

Figura 8 – Vila Nova de Famalicão, 2024

Figura 9 – Santo Tirso, 2024

Figura 10 – Guarda, 2024

Figura 11 – Pinhel, 2024

Figura 12 – Trancoso, 2024

Figura 13 – Trofa, 2024

Figura 14 – Lixa, 2024

Figura 15 – Felgueiras, 2024

Figura 16 – Fafe, 2024

Figura 17 – Braga, 2024

Figura 18 – Estremoz, 2024

Figura 19 – Elvas, 2024

Figura 20 – Borba, 2024

Figura 21 – Coimbra, 2024

Figura 22 – Santa Comba Dão, 2024

Figura 23 – Tondela, 2024

Figura 24 – Tomar, 2024

Figura 25 – Entroncamento, 2024

Figura 26 – Santarém, 2024

Figura 27 – Seixal, 2024

Figura 28 – Barreiro, 2024

Figura 29 – Montijo, 2024

Figura 30 – Samora Correia, 2024

Figura 31 – Ponte de Sor, 2024

Figura 32 – Abrantes, 2024

Figura 33 – Ovar, 2024

Figura 34 – Santa Maria da Feira, 2024

Figura 35 – Lourosa, 2024

Figura 36 – Tarouca, 2024

Figura 37 – Mirandela, 2024