João Miranda
joaomhmiranda@outlook.com
Arquiteto e Doutorando no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (DA/UAL), Portugal. CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
Para citação:
MIRANDA, João – A substância das coisas. Estudo Prévio 25. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, dezembro 2024, p. 262-269. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/25.1
Artigo recebido a 27 de novembro de 2024 e aceite para publicação a 02 de dezembro de 2024.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
A substância das coisas
A publicação A substância das coisas surge na sequência da exposição homónima [1] na NOTE — Galeria de Arquitectura e documenta a prática do atelier José Adrião Arquitetos (JAA) a partir de uma seleção de projetos com evidentes processos ancorados numa relação com as pré-existências e sob um “princípio na voz do território, no espaço e na sua duração tida em continuidade” (ADRIÃO, 2023: 135). A exposição A substância das coisas teve a curadoria de Hugo Santos Silva que a partir do “regresso ao acervo e investigação do mesmo” (ADRIÃO, 2023: 135) constrói uma hipótese sobre o modus operandi da JAA a partir de seis projetos [2] do atelier, devidamente numerados e ordenados pelo número de registo, i.e., de arquivo — 014 Ocreza, 024 Santa Clara, 150 Melides, 155 Saboia, 168 Santo António, 195 Santa Inês —, os quais foram transportados diretamente para a publicação, respeitando a mesma lógica.
Esta publicação bilingue representa uma extensão reflexiva e textual da exposição, permitindo uma análise diferenciada dos projetos através dos conteúdos gráficos, bem como de observações escritas em ensaios redigidos por três intervenientes sobre as ideias e práticas que constituem a identidade do atelier. Os projetos publicados da JAA estão circunscritos a um “horizonte reflexivo do seu corpo de trabalho, localizado entre 2002 e 2022, após a edição de Nem Princípio Nem Fim, JAA 2010-2020.” e funcionam como mote para a discussão sobre “o seu processo de trabalho enquanto hipótese da diversidade na prática disciplinar em arquitectura” (ADRIÃO, 2023:135).
Figura 1 – Fotografia do projeto expositivo na NOTE, Lisboa 2023
(Fonte: Arquivo do Atelier © José Adrião Arquitetos / © Hugo Santos Silva)
Uma das singularidades da publicação, em comparação com a exposição, é a inclusão de ensaios que enquadram a prática do atelier, bem como de fotografias do projeto expositivo, que evidenciam detalhes da disposição dos projetos com o espaço interno da galeria. Sem uma organização evidente em capítulos, a publicação inicia-se com uma reflexão em forma de ensaio do autor, José Adrião, que apresenta ao leitor duas perguntas, contendo termos como paisagem e lugar — e também ao longo dos tempos. [3]
Após este ensaio, segue-se uma seleção de cinco fotografias de Hugo Santos Silva. A primeira evoca o espaço exterior da cidade e a entrada da NOTE, enquanto as restantes retratam o percurso pelo interior, ao longo do limite interno da galeria. Estas imagens sugerem que o leitor seja conduzido pela mão esquerda, tocando a parede interna, recriando a experiência corporal de movimento no espaço. A primeira fotografia apresenta um plano de pormenor de um degrau em pedra lioz, perfeitamente alinhado pela face superior com a face inferior de uma cantaria de pedra, e uma porta semiaberta. As restantes fotografias consistem em planos gerais do espaço interior da galeria, com diferentes aproximações, mas sempre com um elemento horizontal de madeira devidamente centrado no plano. Estes elementos construídos constituem o núcleo do projeto expositivo concebido pelo atelier JAA. O degrau marca a criação de um (novo) lugar e, consequentemente, de um novo projeto — o 209 — para o atelier. O elemento horizontal, fixo às paredes internas da galeria, foi concebido para acolher as “pranchetas” (SANTOS SILVA, 2023) dos projetos que incluem conteúdos gráficos como fotografias, plantas, cortes, alçados e esquissos dispostos em vários níveis. [4]
Figura 2 – Fotografia do projeto expositivo na NOTE, Lisboa 2023
(Fonte: Arquivo do Atelier © José Adrião Arquitetos / © Hugo Santos Silva)
A termologia de “pranchetas”, empregue pelo curador Hugo Santos Silva, pretende representar um momento de associação entre diversos conteúdos. Esta lógica está referenciada pela metodologia de Aby Warburg (1866–1929) em Mnemosyne Atlas. Na exposição, cada “prancheta” continha um único elemento de cada projeto, fosse uma fotografia ou um desenho, e tinha um tamanho distinto consoante o tipo de conteúdo — definindo uma dinâmica e hierarquia visual. Por outro lado, os diversos formatos de cada “prancheta” foram uniformizados na parte editorial e, em vez da singularidade de uma “prancheta” por página, na publicação várias “pranchetas” são normalmente introduzidas em cada spread, criando novas relações e outras associações — e assim relacionando os conteúdos gráficos de cada projeto de outra forma.
Sobre os conteúdos escritos na publicação, mais precisamente os ensaios, o enquadramento da prática de arquitetura da JAA é enriquecido pelo contributo de António Guerreiro. A sua reflexão propõe uma visão intelectual, metodológica e plural sobre a prática de José Adrião e do atelier José Adrião Arquitetos (JAA), enaltecendo a abordagem cuidadosa e o compromisso com o contexto e a história de cada pré-existência, bem como a “concentração de uma tripla archè” que dá forma ao título: Arquitectura, Arqueologia, Arquivo (ADRIÃO, 2023; 25).
Os ensaios de Bárbara Silva e de Hugo Santos Silva, de certa forma, em comum, reforçam a prática do atelier JAA como uma enraizada e conduzida no lugar. Essa prática parte de “códigos invisíveis” (ADRIÃO, 2023: 37), nunca dissociados dos actos de fotografar, gravar, imaginar, desenhar, medir, propor, perguntar, sondar, observar atentamente sem preconceitos e “interpelar um novo lugar, como se não houvesse outra forma de fazer”. Esta abordagem, como o próprio José Adrião mencionou diversas vezes nas visitas guiadas à exposição, culmina finalmente em construir e materializar.
As inúmeras fotografias — sejam elas das pré-existências, muitas vezes habitadas pela equipa da JAA; sejam fotografias de montagem em obra; sejam fotografias com redefinições de projeto no lugar; ou ainda fotografias com personagens que conduziram o processo (como o caso do João — em 024 Santa Clara) reforçam os actos mencionados anteriormente e, acima de tudo, evidenciam uma característica crucial para a compreensão da prática do atelier, inerente a José Adrião: a viagem. [5]
Devido às singularidades mencionadas e à complementaridade descrita, a publicação transforma-se, assim, num outro objeto autónomo e livre — cuidadosamente desenhado graficamente por João M. Machado, em estreita colaboração com Hugo Santos Silva, num exercício de continuidade e interligação objectual entre disciplinas — que amplia a experiência da exposição ao permitir que o leitor explore cada projeto em maior detalhe e com novas camadas de significado. O formato da publicação deriva das fotografias de Hugo Santos Silva, criando uma harmonia entre o cosmos visual da reportagem fotográfica do projeto expositivo (e da exposição) e o cosmos editorial, tornando a publicação num resultado natural de um registo fotográfico [6]. A publicação, como a exposição, no entanto, não revela a origem nem a história do título definido — algo presente na memória de José Adrião a partir de um projeto prévio. Outras memórias foram reveladas durante a exposição, através de um compêndio de fotografias do próprio José Adrião. Essa memória, de relativa importância, é uma reminiscência de experiências passadas e de conhecimento adquirido, que ressurgiu em 2023 para o projeto da exposição.
A substância das coisas adiciona “distintos pontos de vista” (ADRIÃO, 2023; 7) e contribui significativamente para a compreensão da prática de José Adrião, apresentando a arquitetura como um acto de descoberta e revelação do lugar. A publicação está intrinsecamente ligada intelectualmente pelo pensamento incorporado no projeto expositivo, e pelas diversas ações decorridas durante o processo da exposição. Igualmente, esta publicação destaca-se pela sua complementaridade editorial numa abordagem associativa, integrada na estratégia curatorial [7], e pela forma como interliga fotografia (do projeto expositivo), desenho e crítica, proporcionando uma experiência associativa que se alinha com a estratégia e visão da exposição.
Em suma, A substância das coisas transcende a função de mero registo da exposição, ou até de um simples exercício de catálogo, funcionando como uma ferramenta de análise crítica que permite ao leitor compreender algo mais, e com profundidade conceptual, o trabalho de José Adrião, a partir dos ensaios apresentados. Essa compreensão inclui a interpelação de um novo lugar, concebido como uma génese para a materialização de processos no campo disciplinar da Arquitetura — o lugar, para José Adrião, serve como catalisador de diversas ações.
Devido à acção da JAA, o lugar da NOTE — Galeria de Arquitectura foi transformado e não foi o mesmo após a exposição A substância das coisas — tendo a sua origem sido transportada — revelando um novo lugar a partir de uma “acção para o espaço” [8] e, como resultado, uma nova perspectiva sobre o mesmo. No fundo, é possível afirmar que a exposição A substância das coisas está na génese de novas matérias, uma vez que o convite para a exposição e o consequente desenvolvimento do projeto expositivo potenciaram a criação de dois (novos) eixos: a materialização de um (novo) projeto — 209 NOTE — enunciado pela acção do degrau na Travessa da Cara 30, e a edição da publicação A substância das coisas.
Figura 3 – Fotografia do projeto expositivo na NOTE, Lisboa 2023
(Fonte: Arquivo do Atelier © José Adrião Arquitetos / © Hugo Santos Silva)
Post scriptum
A publicação termina com uma fotografia de © Hugo Santos Silva, que pode ser interpretada como o plano geral do plano de pormenor do degrau em pedra lioz previamente mencionado. A fotografia apresenta uma perspetiva exterior da galeria NOTE (2023), na qual o leitor pode observar, de forma integrada, os três elementos: pré-existência (território), lugar e projeto (expositivo).
Bibliografia
ADRIÃO, José – A substância das coisas / The substance of things. Lisboa: NOTE, 2023.
Entrevistas
ADRIÃO, José – processo(s) sobre substância, 2023.
SANTOS SILVA, Hugo – processo(s) sobre substância: uma estratégia & prática curatorial, 2023.
SILVA, Bárbara – NOTE: princípio(s) & processo(s), 2023.
Acervos
Arquivo José Adrião Arquitetos (JAA).
Notas
1. A exposição A substância das coisas (28.01.2023 — 15.04.2023) foi integrada no ciclo de exposições Processos de Trabalho, com curadoria geral de Bárbara Silva. O convite, proveniente da direção da NOTE, ao atelier JAA surgiu em setembro de 2022, como informado pelo próprio José Adrião na última visita guiada à exposição. A curadoria da exposição esteve a cargo de Hugo Santos Silva, enquanto o projeto expositivo foi concebido pelo atelier José Adrião Arquitetos (JAA).
2. Contudo, um outro projeto esteve patente na exposição, devidamente inserido pelo curador Hugo Santos Silva: o projeto Enola. Quanto ao desígnio, a palavra Enola remete para o Enola Gay, o avião bombardeiro B-29 de fabrico norte-americano utilizado pela Força Aérea dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Em 6 de agosto de 1945, Enola Gay tornou-se o primeiro avião a lançar uma bomba atómica (Little Boy), com Hiroshima, no Japão, como alvo, causando uma destruição sem precedentes. O projeto Enola é uma ação (ato interventivo), descritiva tanto pelo curador, como por José Adrião. Esta ação tem um carácter muito próprio, e possuiu uma presença, talvez por vezes impercetível na exposição não só em alguns momentos, como possivelmente, para alguns. Enola foi um requisito do curador que pretende contar a particular história da acção concretizada por José Adrião. Um requisito que pretendia revelar uma ação no território que promovesse a discussão e o estimulasse o pensamento sobre diversos momentos e eventuais significados sobre a prática do atelier JAA.
3. As perguntas precedidas por um excerto de uma conversa entre Gonçalo Ribeiro Telles e João Nunes (2002).
4. O elemento horizontal acolheu livros de referência para José Adrião, como o caso do livro A Árvore em Portugal, ou Derek Jarman’s Garden, ou Main Entrance: Quinta do Monte 1983-1988, ou On the Necessity of Gardening: An ABC of Art, Botany and Cultivation, ou Super Normal: Sensations of the Ordinary e outros demais materiais ou matérias selecionadas pelo curador.
5. Ver, sobre este assunto, “A viagem, também influente nos projectos, parece surgir aqui como Dafne para os lugares, resposta maior que tenta conferir à obra”.
6. O formato da publicação foi concebido a partir da orientação horizontal das fotografias de Hugo Santos Silva, permitindo que estas fossem apresentadas na sua verdadeira proporção e limitadas pelo limite do spread. Devido à presente decisão editorial, este formato também emoldura os conteúdos escritos dos autores e os elementos gráficos presentes na exposição, seguindo uma lógica de organização individualizada.
7. A estratégia curatorial advém de investigações prévias realizadas pelo curador Hugo Santos Silva sobre questões focadas na relação entre o corpo e o espaço. A dimensão laboratorial revela-se crucial para o curador, que pretende que o espaço (e acto curatorial) procure uma dimensão teórica e de reflexão, servindo este princípio como mote para o desenrolar do seu processo.
8. Ver, sobre este assunto, a citação: “A JAA propõe uma acção para o espaço da Note: um novo degrau possibilita outra entrada, outra duração, um momento agora lateralizado descontinua a bifurcação do espaço, passando a atribuir-lhe unidade. O método, entre o objecto e o não nomeável, estende-se à exposição, faz-se processo e resultado, concretiza outro espaço” (ADRIÃO, 2023; 135).