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Denis Joelsons

denis@denisjoelsons.com

Arquiteto, mestre pela FAU-USP, São Paulo-SP, Brasil.

 

Laura Rosenbusch

contato@venta.arq.br

Arquiteta, sócia do Venta Arquitetos, mestre pela PUC-Rio, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

 

Gregório Rosenbusch

contato@venta.arq.br

Arquiteto, sócio do Venta Arquitetos, mestre pela PUC-Rio, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

 

 

Para citação:

JOELSONS, Denis; ROSENBUSCH, Laura; ROSENBUSCH, Gregório – Preexistência na Paisagem: Paisagem como projeto; Construir o que já reside. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 136-145. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.13

Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 30 de maio de 2025.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Preexistência na Paisagem: Paisagem como projeto | Construir o que já reside

 

Resumo

A paisagem, antes de ser moldada pela intervenção arquitetónica, constitui um sistema dinâmico de processos e relações que conectam natureza e cultura. A partir dessa perspetiva, os escritórios Denis Joelsons e Venta Arquitetos são convidados a refletir sobre seus trabalhos, compreendendo a arquitetura como parte ativa desse fluxo—um elemento que não apenas se insere no ambiente, mas também o transforma, o renova e fortalece os vínculos de continuidade entre o espaço natural e a construção humana.

Para Denis Joelsons, a relação entre preexistência e paisagem na arquitetura não se limita à continuidade, mas envolve fricção e diálogo, onde o projeto se constrói como um campo de interação entre espaço, cultura e perceção simbólica.

No caso do Venta, a relação entre arquitetura e paisagem se estabelece como um processo simultâneo e interdependente, onde a construção revela e potencializa os elementos naturais preexistentes, tornando visível a estrutura espacial e temporal do lugar.

 

 

Palavras-chave: preexistência, paisagem, contexto, cultura, natureza.

 

Paisagem como projeto |

Denis Joelsons

 

 

 

A palavra “preexistência” no enunciado proposto para o 1° ciclo de conversas da plataforma Na Ponte, chama a atenção porque traz, subjacente, a ideia de que é possível pensar arquitetura sem preexistência, sem contexto. Por vezes fantasiamos que o perigo dessa abordagem já é conhecido e que essa crítica seria desnecessária hoje. O otimismo anódino da arquitetura auto-referente fica muito melhor como ilustração em projeção isométrica do que materializado no espaço.

Lembrei de uma frase do Álvaro Siza que diz algo como a leitura do sítio não é o começo de um projeto, é o próprio projeto. Levar essa afirmação ao pé da letra seria assumir que a arquitetura está sempre em posição subserviente, como resposta de uma questão previamente formulada, pensada sempre em continuidade com a tal da preexistência. Siza recusa essa literalidade e não aceita a leitura redutora do seu trabalho como “contextualista”.

Através da apresentação de alguns projetos de minha autoria, pretendo mostrar que a relação entre preexistência e projeto é complexa, que há fricção, trocas e atrito propositivo entre a intervenção e o seu contexto.

Penso que a arquitetura é radicalmente diferente do objeto de design. Porque a arquitetura configura espaço e existe em relação com o lugar onde está implantada. Enquanto a rede de relações estabelecida pelo objeto-mercadoria está sempre marcada por uma condição nómade, desterritorializada.

Voltando ao outro termo do enunciado, paisagem, vale lembrar que paisagem é um fenómeno cultural, logo completamente artificial [1]. A paisagem é um acontecimento cultural. Ela surge com a cidade e com o divórcio entre homem e natureza. Para refletirmos sobre a noção de paisagem, a história da pintura oferece uma boa entrada. A pintura de paisagem é um fenómeno citadino. Quero dizer que a noção de paisagem é propositiva, não é natural. Não é uma “preexistência”. Retomando a história da pintura eu gostaria de pensar um pouco, com o leitor, em momentos chave da representação pictórica – poderíamos fazer isso com a escultura também – para traçarmos comentários em paralelo sobre a relação entre os projetos e a paisagem.

Escolhi figuras de linguagem que podem guiar algumas reflexões sobre a paisagem, o campo pictórico e os projetos que apresento. Veremos que há contaminação entre essas chaves de leitura, mas, para esta apresentação, atribuo uma figura de linguagem como mote de leitura de cada projeto apresentado.

  1. casa da meia encosta – analogia
  2. “sítio” rio acima – alusão
  3. casa dos terraços circulares – aliteração
  4. casa diorama – metonímia

 

 

Casa da meia encosta

A tradição da pintura de paisagem surge da representação, da mimese. Acho que podemos falar um pouco da relação entre a casa da meia encosta e a paisagem – ao menos pra começar – pela chave da mimese. Vejam como a cobertura ressoa a pendente da encosta. Como o volume do lanternim rebate a pedra do outro lado do vale.

Figura 1Casa da meia encosta (Foto: Pedro Kok).

 

 

Imaginamos que a construção propriamente dita é o muro de contenção e o patamar. Essa é a operação fundamental que configura o lugar. Um pedacinho desse lugar é coberto e ali acontece a casa. Então interessa que a cobertura seja mimética e que o muro não seja. Desenhamos duas escadas espelhadas no muro, uma olhando a outra. Uma dentro da casa e outra fora dela. Como se esse espelhamento sublinhasse o caráter ocasional da cobertura.

Um gesto parecido acontece aí, no trecho em que a vedação salta do plano da casa, justamente na escada. Você sai um pouco da casa pra subir.

No acesso aos quartos vemos a silhueta da montanha enquadrada pelo lanternim. Como numa tela. Paisagem idealizada, infinita, sem primeiro plano.

Como é uma casa de veraneio, desenhada para o convívio, pareceu interessante que, para ter contato com essa vista exuberante, os quartos devessem ser abertos para a casa toda.

 

Sítio Rio Acima

Ainda na chave da representação, mas mais subtil e interpretativa, eu gostaria de mostrar um pouco do projeto do sítio Rio Acima que dialoga com uma paisagem suburbana, simultaneamente rural e industrial.

Figura 2Sítio Rio Acima (Foto: Pedro Kok).

 

 

O tijolo como marca das novas intervenções. O diálogo entre as tábuas de madeira e as fiadas de tijolo. A linha do telhado que se estende no beiral de concreto. A altura do volume do anexo alinhada com a cumeeira da casa preexistente. Há um jogo de aberturas onde o novo conversa com o antigo.

A obra dialoga com um período específico no desenvolvimento desse território, é mais alusiva, não é mimética nem auto referente.

A partir da eleição do tijolo, o arco surge como motivo do projeto.

Voltando à paisagem vemos arcos naturais das Palmeiras de Indaiá que nos sugeriram uma vista enquadrada para posicionar o ofurô externo.

Casa dos terraços circulares

A relação desse projeto com a paisagem é interessante porque construímos casa e paisagem em reciprocidade. Uma relação que Jorn Utzon desenvolveu na sua obra e sobretudo no seu ensaio “Plataformas e platôs” [2]. A paisagem aqui é inventada. A casa mimetiza o vale em seu corte longitudinal, mas engendra a sua própria paisagem. Outra vez, a construção é o terrapleno. Como nas ruínas pré-colombianas. Em certo sentido ela é mais metalinguística. Como a pintura abstrata. Um jogo formal que contracena com a natureza, mas que é regido por regras próprias. A contenção desenhada a partir da ótima geometria e das clareiras existentes é como a repetição de um mesmo som, uma ideia reiterada de diferentes maneiras, aliteração.

Figura 3Casa dos terraços circulares (Foto: Pedro Kok).

 

 

Casa Diorama

A casa Diorama talvez seja o melhor projeto dessa seleção para refletirmos sobre a relação entre arquitetura e paisagem. A palavra diorama tem origem no grego e significa literalmente “através daquilo, o que é visto”. A etimologia da palavra é di– que significa “através” e orama que significa “o que é visto, uma cena”.

A casa recorta cenas interessantes de uma paisagem banal.

O termo foi cunhado pelo francês Louis Daguerre em 1822, para um tipo de display rotativo. O diorama foi um espetáculo visual que se tornou muito popular no século XIX. Então, também há um sentido de representação de determinada cena. Esse sentido também é apropriado para pensar no pátio, tipologia clássica da arquitetura. Os pátios são construções arquetípicas. O jardim cercado é visto em diferentes culturas como uma representação idealizada da natureza, o jardim do Éden é um jardim cercado. Tanto que Adão e Eva teriam sido expulsos dele. Pátio- paraíso.

Aqui falamos da parte pelo todo, metonímia.

A representação idealista do pátio, como paraíso, é paralela à iconografia religiosa da pintura medieval, onde a representação não é mimética mas simbólica.

Na casa Diorama temos a paisagem internalizada no pátio. Um recurso que carrega a história da tipologia da casa pátio. Domus romano.

Desdobrando às camadas da relação entre arquitetura e paisagem temos aqui a paisagem como transcurso temporal que se dá contra o fundo da casa. A paisagem é passagem. A casa como um relógio solar, agrícola, como observatório astrológico. A casa como tela de cinema onde a sombra das árvores é projetada. Entre as folhagens as circunferências de luz, projeções do sol.

Através de recortes no muro perimetral, a paisagem é apresentada como fotografia, como imagem que só funciona enquadrada, contra uma moldura.

Na casa temos um recurso de climatização geotérmica e plantaremos alecrim e da dama da noite na captação do ar. Imagino cheiros diferentes pontuando horários do dia e a sazonalidade do ano marcada também na folhagem e floração da árvore no pátio. Penso numa paisagem olfativa e lembro-me da Alhambra e dos seus pátios com fontes e laranjeiras.

Figura 4 – Casa Diorama – Planta baixa (Fonte: Acervo do autor)

 

 

 

Construir o que já reside |

Laura Rosenbusch e Gregório Rosenbusch

 

 

Ao longo da história, diversos discursos sobre a ideia de natureza orientaram a arquitetura. A compreensão de que o ambiente natural é uma referência para a disciplina contribuiu para fundamentar a visão clássica, segundo a qual a natureza constitui um ideal estético a ser mimetizado. Como expressão desta confiança na ordem natural, Leon Battista Alberti afirma: “É absolutamente certo que a natureza não discorda nunca de si mesma. E assim é.” [3]

Mais adiante, formulam-se outras relações entre arquitetura e natureza, como, por exemplo, a compreensão de que a arte, assim como as formas arquitetónicas, se constituem a partir de princípios análogos aos das formas naturais. Nesse sentido, Gottfried Semper desenvolve a ideia de que, no processo de concepção formal, tanto da arquitetura quanto da natureza, há a articulação de inúmeras variações em torno de alguns elementos básicos.

A esse respeito, Semper afirma: Assim como a natureza com a sua abundância infinita é muito esparsa nos seus motivos, repetindo continuamente as mesmas formas básicas (…), a arte também se baseia em algumas formas [que por meio da combinação] oferecem uma variedade infinita.”[4] Esse processo de elaboração, em Semper, de uma relativa autonomia entre a arquitetura e o mundo natural culmina, por assim dizer, numa espécie de rutura com o mundo natural, quando a arquitetura passa então a se inspirar em outras fontes, como a própria história da arquitetura (nos períodos de revivalismo histórico) ou o universo da tecnologia e das máquinas (no modernismo).

No entanto, é fundamental distinguir as inspirações formais da arquitetura — que podem ou não remeter às formas orgânicas ou ao funcionamento da natureza — da relação inevitável que ela estabelece com as preexistências da paisagem. Essa relação pode manifestar-se com diferentes graus de transformação ou afastamento da configuração original do lugar.

O problema da distinção ou separação entre paisagem natural e a paisagem produzida pela cultura recai, justamente, sobre a relação entre arquitetura e paisagem. Nesse sentido, a crítica contemporânea busca refutar a tradicional distinção entre agente e objeto da ação, ou entre sujeito e objeto, promovendo uma dissolução da cisão entre esses âmbitos, revelando-os, ao contrário, profundamente imbricados. De tal modo, compreendemos a paisagem enquanto categoria que resulta de um processo simultâneo e interdependente de produção da arquitetura (cultura) e da paisagem.

Quando então nos remetemos à prática de projeto, especialmente em contextos com maior grau de preservação das condições naturais da paisagem – e, portanto, quando a relação entre arquitetura e paisagem é potencialmente dialógica – encontramo-nos com uma certa disposição para tornar evidente, ou ainda, tornar visível a paisagem. Metodologicamente, há na leitura das condições da paisagem tal como encontrada, um processo de identificação e seleção dos elementos considerados determinantes na sua construção. Uma vez reconhecidos esses elementos – como linhas de força, cotas, marcos verticais, entre outros – a arquitetura surgiria da relação que estabelece com eles

O horizonte deste modo de operar nos predispõe a pensar que o aparecimento da arquitetura seria, neste contexto, concomitante ao aparecimento de uma determinada paisagem, ou melhor, daqueles elementos considerados determinantes na paisagem. Em outras palavras, arquitetura e paisagem, sujeito e objeto, surgiriam segundo um processo no qual um ganha visibilidade (vem à luz) na medida que torna o outro visível.

Essas ideias, se por um lado resultam, entre outros fatores, de experiências concretas com o projeto de arquitetura e a construção, por outro lado, fazem-se presentes nessas experiências, se assim se quiser, na forma de esboços ou intenções.

Em qualquer caso, e como se sabe, trata-se de uma elaboração teórica que emerge com a prática profissional. Haveria portanto, aqui, no surgimento de uma ideia junto ao surgimento do objeto, o mesmo princípio dialógico do aparecimento da arquitetura junto ao aparecimento da paisagem, conforme o princípio de simultaneidade e interdependência na relação entre sujeito e objeto, mencionado anteriormente. Neste sentido, retornar às obras consistiria na possibilidade de uma arqueologia das ideias — tal como, nas ideias, haveria potenciais disposições espaciais por desvendar.

De tal forma que, se em alguns projetos se revela uma certa atração — por exemplo, pelas árvores, que aí ocupam um lugar de evidência —, haveria então, na disposição espacial, a expressão de uma coesão determinada pela gravidade que esses elementos da paisagem passam a adquirir no contexto do projeto. Este princípio aparece, a seu modo, na Casa Mulungu (2016) e na Casa Montes Claros (2017). Mas o intuito de tornar visível certos elementos da paisagem pode manifestar-se, por exemplo, na proposição de esquemas formais e estruturais que, por sua vez, se inspiram nesses elementos. Na Casa Elevada (2016) e no Pavilhão Araras (2022) esse esquemas resultam de um exercício de redesenho, que consiste na tentativa de aprender com as próprias árvores um determinado modo de ancoragem e de elevação, tal como a copa se eleva, em busca de ar e luz, e o enraizamento se afunda em busca de solo firme, definindo assim um delicado equilíbrio estático.

Noutras situações de projeto, em particular no caso de terrenos com topografia acidentada ou acentuado declive, observamos o surgimento de um eixo horizontal – uma cota de nível – que parece cumprir o papel de ressaltar, ou como abordamos acima, de tornar evidente, a situação topográfica e os seus acidentes. Ensaios em torno desse tema foram realizados na Casa Henrique Cunha (2013) e na Piscina São Paulo (2015). Este procedimento parte da ideia segundo a qual a permanência da arquitetura é reveladora da impermanência das condições da paisagem, em particular, da sua ambiência, derivando na ideia de que o rigor geométrico na arquitetura é revelador da condição inexoravelmente acidentada da paisagem natural – o que aparece como notável lição na sequência de muros de contenção que definem a chegada e o acesso à Casa de Chá Boa Nova, de Siza Vieira.

Figura 5 – Casa de Chá Boa Nova, de Siza Vieira (Fonte: vista aérea, autor desconhecido. Retirado de: arquiscopio.com).

Notas

[1] Vide SIMMEL, Georg – A Filosofia da Paisagem. Covilhã: LusoSofia Press, 2009.

[2] UTZON, J. – Platforms and Plateaus. Zodiac, 10, 1962, p. 1-10.

[3] ALBERTI, Leon Battista – Da arte de construir: tratado de arquitetura e urbanismo. São Paulo: Hedra, 2012, p. 368.

[4] SEMPER, Gottfried – The Four Elements of Architecture and Other Writings [1851]. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 183.