Marina Panzoldo Canhadas
info@marinacanhadas.com.br
Arquiteta, urbanista fundadora do [entre escalas], mestra pela FAU-USP e professora de projeto arquitetónico e história da arquitetura na Escola da Cidade e FAU Mackenzie, São Paulo-SP, Brasil.
Carlos Zebulun
carloszebulun@gmail.com
Arquiteto, mestre pela PUC-Rio e professor no Departamento de Projeto de Arquitetura na FAU-UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
Juliana Ayako
ayakojuliana@gmail.com
Arquiteta, mestre pela FAU-Usp e professora no Departamento de Projeto de Arquitetura na FAU-UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
Para citação:
CANHADAS, Marina Panzoldo; ZEBULUN, Carlos; AYAKO, Juliana – Preexistência e relações: Intervenções em sobrados antigos em São Paulo; Projeto em relação. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 109-116. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.10
Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 28 de maio de 2025.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Preexistência e relações: Intervenções em sobrados antigos em São Paulo | Projeto em relação
Resumo
A preexistência na arquitetura pode ser compreendida como um conjunto de forças vinculantes—energias que circulam e se influenciam mutuamente antes mesmo da materialização do espaço. Neste contexto, os escritórios [entre escalas] e a dupla Juliana Ayako e Carlos Zebulun são convidados a refletir sobre suas práticas a partir dessas dinâmicas invisíveis: o local e seus conflitos, as discórdias e os grandes acordos, a história e os tempos que atravessam. Tudo aquilo que não se traduz diretamente em matéria, mas que molda as relações e estrutura o pensamento arquitetónico.
No [entre escalas], as intervenções em sobrados antigos de São Paulo são exercícios que exploram a preexistência como um elemento fundamental no processo arquitetónico, resgatando memórias urbanas e construindo relações entre passado, presente e futuro por meio da recuperação e adaptação dos espaços.
Na dupla Juliana Ayako e Carlos Zebulun, a preexistência na arquitetura se manifesta nas relações estabelecidas entre projetos, memórias e referências, revelando conexões entre processos criativos, estratégias repetitivas e a construção coletiva do espaço, enquanto a experiência subjetiva dos arquitetos influencia a perceção e interpretação dessas relações.
Palavras-chave: preexistência, relações, recuperação, memória, processo.
Intervenções em sobrados antigos em São Paulo |
Marina Panzoldo Canhadas
“Todos nós temos esse desejo, essa fantasia de ocupar espaços primordiais, velhas ruínas, castelos, mesmo recintos paisagísticos, montanhas, colinas e vales. O pré-existente é muito mais atraente. É um assunto interessantíssimo para nós, a reciclagem de um edifício, a recuperação do património formal e histórico, porque o que menos se devia fazer é uma transformação efetiva. A transformação tem que ser algo assim, como quem capina no lugar a passar pra não sujar o pé de lama.” Paulo Mendes da Rocha. A imagem do Brasil (depoimento). Revista Caramelo 4. São Paulo: FAU USP, 1992, p. 93.
A formação em Arquitetura e Urbanismo é uma forma de ser e estar no mundo. É um jeito de olhar, de se relacionar, de perceber e compreender o meio em que vivemos.
O evento Na Ponte 2024 | São Paulo recebe o Rio: preexistência e o tempo, no segundo semestre 2024 na Escola da Cidade, teve o intuito de aproximar, estreitar, tensionar, expor inquietações e reflexões acerca da prática em Arquitetura de jovens arquitetos do Rio de Janeiro e São Paulo através de temas específicos. A apresentação do nosso trabalho teve como linha orientadora o tema: ‘Pré-existência e relações”. Dentro deste contexto, as perguntas que formulámos, desde o início, foram: “Quais são as questões que percorremos? O que nos move? Como é o nosso processo? Que tipo de pesquisa realizamos? Como são as nossas representações? Como registamos o processo e as nossas obras construídas? A partir destas questões, o texto usca refletir sobre o tema “Preexistência e relações” através dos projetos de recuperação de sobrados antigos em São Paulo realizados pelo escritório [entre escalas] em relação com alguns pensamentos de Lina Bo Bardi e Luis Barragán.
A recuperação de sobrados antigos têm sido a principal frente de trabalho do [entre escalas]. E por coincidência, ou não, a Casa da rua Rocha foi o primeiro projeto realizado, ainda antes da formação do [entre escalas], entre 2014-2016. O projeto contemplou a renovação e transformação de um imóvel antigo existente localizado num lote de 5x20m no tradicional bairro do Bixiga em São Paulo. O projeto teve início com a investigação do próprio bairro. Um lugar de memória e resistência numa área central da cidade de São Paulo, (onde meninos brincam a soltar papagaios), popularmente conhecido pelas cantinas italianas e que abriga terreiros e roda de samba. Delimitado entre a Av. Paulista, a Av. 9 de Julho e a Av. 23 de Maio, cuja obra do metro 14 Bis – Quilombo Saracura, em andamento, encontra-se paralisada pela descoberta de mais de 20 mil objetos do Quilombo Saracura. Uma região de forte especulação imobiliária, onde as habitações populares construídas por imigrantes italianos na década de 1940 são, na sua maioria, tombadas pelo patrimônio, que resistem e configuram a paisagem urbana do bairro. Um bairro com grande presença de equipamentos culturais, como o Teatro Oficina (Lina Bo Bardi e Edson Elito, 1984), o MASP (Lina Bo Bardi, 1957-1968), entre outros.
Entender as dinâmicas da cidade, registar, fotografar e vivenciar o bairro fez parte do processo de pesquisa – no campo – para a elaboração do projeto. Como estratégia arquitetónica da Casa na rua Rocha, manter a fachada que integra o conjunto de sobrados geminados da rua foi uma premissa fundamental do projeto. Recuperar elementos originais da construção, como a estrutura de madeira do telhado, portas e caixilhos de madeira e o próprio piso de soalho de madeira de peroba rosa existente. E a estratégia de repensar o próprio programa da casa entendendo o pátio como articulador das áreas sociais e de serviços, e compreendendo a cozinha também como uma área social. O pátio, antigamente contemplado como uma área de serviço, agora integra-se diretamente com as áreas internas e sociais da casa através de grandes aberturas. Novas relações são criadas. Criar novas aberturas para a entrada de luz e ventilação natural também foram premissas de projeto. Remover rebocos das paredes para revelar as técnicas construtivas existentes, numa espécie de “arqueologia arquitetónica”, permitindo que o próprio edifício narre a sua história através das marcas do tempo e dos materiais que o compõem.
A partir desta primeira intervenção surgiram outros projetos com o mesmo tema e com características pré-existentes similares. A Casa Apiacás (2022), a Casa Saracura (2022), a Casa Butantã (2023), a Reforma e Ampliação Casa Vila Mariana (2023), a Casa em Alto de Pinheiros (2024) e a Padaria Mich Mich (2024). Tornou-se recorrente, no nosso escritório, intervir em pré-existências, casas antigas e algumas abandonadas da cidade de São Paulo. Como metodologia de trabalho neste tipo de pré-existência algumas estratégias de projeto foram adotadas: manter e recuperar elementos das construções originais de valor arquitetónico, abrir novos vãos e aberturas para melhor entrada de luz e ventilação natural e repensar o próprio programa: como acontece relação entre as áreas internas e as áreas externas?
No caso da Casa Saracura (figura 1 – Axonométrica Casa Saracura), também localizada no bairro do Bixiga, dois pontos determinaram o partido do projeto: a presença do muro histórico de contenção ao fundo do lote, típico dos lotes do Bixiga, pela condição natural dos terrenos e da topografia do bairro, e a presença da linha de água Saracura atrás do muro (deixando-o sempre húmido). Procurámos criar relações visuais com o muro de contenção fazendo-o presente e visível a partir de diversos ambientes da casa. A primeira operação foi remover uma escada externa existente e os revestimentos do muro, deixando o tijolo aparente.
Mas quais são os fios invisíveis, deslocamentos e vivências que conformam este atlas imaginário individual do arquiteto? Como tornar visível aquilo que não é matéria?
No projeto, a criação do tanque de água com a fonte, surgiu num primeiro momento a partir do estudo da obra de Luis Barragán (tema de mestrado realizado por mim, Marina Panzoldo Canhadas, na FAU-USP entre 2016-2018) onde a presença da água entra nos projetos como “elemento poético”. Mas no caso da Casa Saracura, através de pesquisa em mapas antigos da cidade de São Paulo, para tentar entender porque o muro estava sempre húmido, foi descoberto que a linha de água Saracura passa exatamente por trás do muro. A fonte (Fig. 2 – Casa Saracura. Foto Pedro Kok) e o tanque d ́água, além de elementos poéticos são também simbólicos, pois trazem as águas do Saracura para dentro do pátio, antes invisíveis aos olhos. A intervenção do sobrado existente, para além de resolver um programa residencial, recuperou também a memória do bairro criando relações entre passado, presente e futuro através das águas do Saracura.

Figura 1 – Axonométrica Casa Saracura

Figura 2 – Casa Saracura (Foto: Pedro Kok).
Um dos gestos de Lina Bo Bardi no projeto da Casa do Benin para a reabilitação de um antigo casarão no Pelourinho, em Salvador (1987), foi a criação de um grande vazio vertical que estabelece uma ligação entre os diferentes pisos, anteriormente isolados entre si. Na Casa Saracura, foi aberto um vão no soalho existente do primeiro pavimento, criando um vazio e um pé-direito duplo no rés-do-chão, estabelecendo uma ligação visual entre os dois níveis. Desta forma, o gesto dialoga com o pensamento de Lina Bo Bardi e recorre a algumas de suas estratégias projetuais. O mesmo ocorre com o Centro de Convivência LBA em Cananéia de Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki (1988), um grande vazio é criado conectando visualmente o térreo inferior e o térreo do nível da rua. Esse processo de pesquisa e aprofundamento sobre a história do bairro, para a elaboração de um projeto arquitetónico criou relações com várias pré-existências: físicas, simbólicas e temporais.
Nossas estruturas duram mais do que nossas funções, e cabe a nós repensarmos e considerá-las em um trabalho de justaposição e sobreposição que atravessa o tempo. Num processo contínuo de deslocamento e aproximação. É uma resposta possível, ainda que numa pequena escala, que a nossa geração se depara.
Projeto em relação |
Carlos Zebulun, Juliana Ayako
Possuímos duas práticas independentes, situadas no Rio de Janeiro e atuamos juntos em grande parte dos projetos, mas também em parceria com outros profissionais. Não há nada – ou muito pouco – de novo na nossa metodologia de trabalho. O nosso processo consiste na combinação de soluções técnicas tradicionais e de imagens colecionadas através da experiência subjetiva, muitas vezes evocadas de forma voluntária, outras vezes de maneira involuntária. Nossa maneira de trabalhar e pensar a arquitetura consiste em fazer repetidamente a mesma coisa, com rigor, cujo valor e singularidade está nas relações que estabelece com as condições específicas de cada contexto.
Nesse sentido, o primeiro ciclo de conversas Na Ponte foi uma oportunidade para reunir projetos desenvolvidos em conjunto, individualmente ou em colaboração com outros parceiros, a partir das relações que estabelecem entre si, com obras de outros arquitetos e com questões que são perseguidas sucessivamente. Ao sobrepor uma sequência de imagens — do nosso cotidiano, de instalações artísticas, de referências coletadas ao longo de investigações acadêmicas — a esse conjunto de projetos, buscamos observar se seria possível borrar a linha de contato que define a suposta singularidade de cada um, abordando a sua dimensão coletiva através de um processo de elementarização e da repetição de certos mecanismos.
Se a análise de um projeto, construído ou não, tem a capacidade de evidenciar, em certa medida, um repertório de soluções e referências, interessa-nos investigar como a conexão entre esses elementos revela pistas sobre os processos de memória e esquecimento de quem projeta, mas também de quem vive o espaço projetado.
As perguntas se reforçam: o que perdura de uma ação na outra? Quais traços de um projeto carregam em si a memória do anterior?
Sequência de projetos e referências apresentados no âmbito do evento Na Ponte em São Paulo, em agosto e setembro de 2024:
Sitio Gloria [Reforma São Conrado/Casa na Árvore/Galpão Central/Caçamba] – Naai [Fred Sandback] – Reforma Bambina [Palazzo Grassi, Tadao Ando] – Escritorio Link – Escrivaninha Bento – Cenário Autobiografia do Vermelho – Banco Canteiro – Anexo Santa Teresa – Orquidário Casa Wabi [Coletor oceânico da praia de Copacabana] – Casa na Árvore [House in the Adelaide Hills, Glenn Murcutt/Píer da praia de Ipanema/Casa Henrique Cunha, Venta arquitetos] – Anexo Santa Teresa – Casa na Árvore [Tanpopo, Terunobu Fujimori] – [Fábrica de papel no Marrocos, Jørn Utzon] Casa Vargem Grande – [Ruínas da antiga fábrica de cartuchos de Realengo] Parque Realengo – Diagrama de relações de escritórios de arquitetura e projetos em conjunto[1]

Figura 3 – Escora de obra da casa Vargem Grande (Foto: Federico Cairoli).