Sofia Pinto Basto
sofiapintobasto@hotmail.com
Arquiteta e Doutoranda no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (Da/UAL), Portugal.
Para citação:
BASTO, Sofia Pinto – Arquitetura Público Cidade. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, dezembro 2025, p. 156-158. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.01
Recebido a 19 de maio de 2025 e aceite para publicação a 28 de maio de 2025.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Arquitetura Público Cidade
A Arquitetura é um ponto de vista, um olhar crítico sobre o mundo. Ricardo Carvalho, num compromisso com esta condição, opera nos limites do campo expandido da disciplina: a prática, o ensino, a teoria, a divulgação. Arquitetura Público Cidade é a caminhada crítica deste pensamento.
Caminhantes
Caminhar é ter falta de lugar, é uma forma de inquietação [1]1, a natureza do movimento na cidade é a da privação do lugar. Os textos que este livro apresenta são a expressão dessa inquietação, são o olhar do arquiteto sobre o tecido do mundo.
Em Arquitetura Público Cidade seguimos a deambulação de um caminhante. O caminhante urbano, na sua mobilidade, experimenta a solidão, uma categoria decorrente do exílio quotidiano que a cidade promove. O anonimato urbano ativa a capacidade de introspeção e o seu correlato, a liberdade. Esta forma livre do pensamento é acompanhada de uma intensificação da atenção. Quando caminhamos na cidade tornamo-nos sismógrafos, dando conta das pequenas variações, erosões, modificações de luz. Nesta lentidão resgatamos a cidade invisível, da aceleração comum. Liberdade e atenção são as colorações fundamentais destes ensaios.
Ícaro e Dédalo
Num texto sobre “Práticas do Espaço” 1, Michel Certeau, descreve o modo como compreendemos as cidades. A nossa relação com o tecido urbano tem duas formas essenciais:
A primeira é a da cidade vista de cima. O texto é escrito a partir de um lugar Babélico, a cobertura do World Trade Center, e representa a cidade através do espaço geométrico, teórico e totalitário. A esta visão corresponde uma ambição humana ancestral, uma utopia de domínio que existiu mentalmente muito antes de existir como apresentação real. Conhecemos gravuras, desenhos e pinturas de cidades vistas de do alto, de mapas do território, muito antes destas serem visões reais, antes dos arranha-céus, dos aviões, dos drones. Esta visão, Certeau classifica como a visão de Ícaro. A segunda forma, o olhar de Dédalo, é a visão do caminhante no espaço labiríntico. Uma visão antropológica, mítica, tumultuária, feita de fragmentos, afetos, impurezas.
O livro Arquitetura Público Cidade é, de alguma forma, uma apresentação literária, destas duas visões. De um modo disciplinar, intercala uma visão panótica, geométrica, de síntese – a visão do panorama da Arquitetura portuguesa da década de 50, os planos urbanos do século XX – e uma outra fragmentada, impura, afetiva. A síntese, a visão panótica nunca abandona a condição de caminhante.
A leitura da contemporaneidade que Arquitetura Público Cidade propõe é a deste lugar duplo, da capacidade da síntese, onde o retrato do ecossistema cultural e arquitetónico se desenha, mas também a escala menor, o lado impuro e tonal que a proximidade comporta. O matiz afetivo do ensaio livre, crítico, atento, que habita o contexto cultural e toma partido. São desvios, reflexões, atos de cidadania, lugares da cidade onde procuramos ser ouvidos.
Cidade-livro
Os livros, tal como as cidades, constroem-se numa sobreposição de modelos e traçados. É desse compósito, metabólico, orgânico, desta sobreposição de matrizes a escalas, que este livro é feito. Como um mapa que nos orienta e contextualiza, obrigando-nos a parar para, de seguida, voltar a submergir.
Qualquer livro, qualquer cidade, é um lugar de fricção. Uma justaposição entre uma leitura privada e um chão comum, um solo coletivo onde todos os mapas se sobrepõem mas também um território que nos implica, entre os lugares da memória e as esquinas dos nossos afetos. Cada um de nós é uma cidade privada.
Arquitetura Público Cidade, é um livro-cidade, um convite a errar e formar, entre ensaios, um sentido, um mapa afetivo, uma mitificação pessoal.
Vocação de perder-se
Este é um livro feito de textos-fragmento, sem a imposição da síntese, um convite ao que um viajante chamou a Vocação de perder-se [2], a esquecer o Mapa do território. A forma deste convite, esta errância, tem um carácter específico, o de perder-se num lugar que já se conhece. Recuar, recuperar um testemunho, uma suspensão, uma relação afetiva, para poder redescobrir e voltar a constituir um sentido. No modo como Bernardo Soares, no seu desassossego, descobre a Rua dos Douradores [3].
Também neste livro, revisitamos os “lugares comuns” da cultura arquitetónica contemporânea – Barragan, Niemeyer, Siza, Souto de Moura, Zumthor – com o desdobramento da redescoberta. Arquitetura Publico Cidade opera o sortilégio da recuperação de um lugar de espanto inicial onde somos obrigados a voltar a pensar, a sair das categorias que já conhecemos. Como a cidade quotidiana, habitada, olhada de forma renovada, propondo novos sentidos, não visíveis, esquinas onde temos encontros antigos, renovados.
Melancolia
Arquitetura Público Cidade é uma abertura, um mapa não traçado, um cadavre exquis incompleto. Cada texto contêm uma irresolução, um inacabamento que somos convidados a completar.
A deambulação, nesta cidade-livro, está tingida pela melancolia, uma ambição de fixar um momento com a ambivalência entre fidelidade e traição que esta definição comporta. Com a consciência de que o momento é sempre fugaz, Ricardo Carvalho procura a fixação da memória coletiva da vida urbana – Lisboa, com Carrilho da Graça e Manuel Graça Dias no Frágil – ou da vida privada – com Ricardo Bak Gordon numa madrugada, numa casa por vir, ainda vazia.
Somos observadores distantes e somos parte dessa memória. Estes retratos, são situações comuns a todos nós, acontecimentos que sabemos, de imediato, que resistirão ao seu desaparecimento, memórias instantâneas.
É este matiz que resgata o livro da categoria do livro observatório. Para além de um conjunto de textos essenciais à disciplina, à Arquitetura, à cidade, à investigação histórica, este livro é um ponto de vista, uma visão. Construída por todos nós, arquitetos, leitores, caminhantes, incuráveis melancólicos.
Notas
[1] CERTEAU, Michel – L’invention du quotidien. Tome 1: Arts de faire. Paris: Folio Essais, 1990.
[2] MICHIELI, Franco – La vocación de perderse. Madrid: Siruela, 2021.
[3] SOARES, Bernardo – Livro do desassossego. Lisboa: Assírio & Alvim, 2023.