Delia Sloneanu
sloneanu.delia@gmail.com
Arquiteta, romena, sócia-fundadora do Studio Papaya, doutoranda em Arquitetura Contemporânea no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (Da/UAL), São Paulo-SP, Brasil.
Para citação:
SLONEANU, Delia. Ponte, travessia, deslocamento. Reflexões sobre futuros possíveis. Posfácio ao dossier. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 159-161. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.16
Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 30 de maio de 2025.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
“As travessias estão geralmente relacionadas a conexão: a ponte possibilita a transposição entre duas margens de um rio, a escada faz a ligação entre dois níveis, a rampa vence o desnível de forma acessível, os caminhos conectam territórios.” [1]
O que significa estar na ponte? Estar em movimento, atravessar, se deslocar entre duas pontas, seja física ou metaforicamente. A noção de travessia tem sido explorada enquanto dialética conceptual em vários campos, desde a filosofia, a educação até à política e à arte. Não é por acaso que foi escolhida, como tema da 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo em 2022, no final do período da pandemia mundial, suprindo o carecer da conexão social. Na conceção dos curadores, as travessias podem ser entendidas também como percurso dos corpos no território, abrangendo desde o histórico de deslocamentos coloniais forçados, até à migração interna do campo para a cidade. Esse movimento, assemelhado a uma colcha de retalhos de experiências coletivas, possibilita o compartilhamento de experiências, de memórias e de identidade.
Ao pensar a travessia como percurso transformador, de deslocamento entre duas margens, a ponte, mais do que um elemento conector, torna-se um espaço de atravessamento identitário, uma terceira margem interna, assim como descrita por Ricardo Bak Gordon, na entrevista para o artigo publicado no número anterior desta revista [2]. O processo de escrita do artigo foi um exemplo desse mesmo tipo de percurso, onde a experiência iniciática de pesquisa académica, somada à experiência profissional nascida de um deslocamento migratório, convergiram para uma revelação identitária, no debruçar sobre o tema da terceira margem, que possibilitou um espelhamento entre entrevistador e entrevistado. Como resultado, emerge o entendimento de que o Cato de atravessar traz em si uma condição inerente: a de se deixar atravessar. É nesse gesto que a curiosidade se transforma num território fértil, suspenso sobre as margens — um espaço de descoberta das sementes que já existem dentro de si. Dessa forma, a ponte surge como um espaço coletivo, de exposição às imprevisibilidades da descoberta.
A participação no ciclo de conversas Na Ponte, muito mais que a casualidade de estar no lugar e na hora certa, representou aceder a um espaço partilhado de pensamento, que se desdobrou numa série de concatenações, algumas das quais levaram para a organização do atual Dossier, onde uma ponte Brasil-Portugal foi criada, essa mesmo sendo possível a partir de deslocamentos anteriores, como Brasil-Argentina e Brasil-Romênia. A plataforma Na Ponte surge como um espaço de troca, divulgação e vínculo entre práticas de jovens arquitetos e arquitetas, suprindo a necessidade de um espaço-pausa para reflexão e debate. A ponte torna-se metáfora — de uma suspensão no tempo geralmente acelerado do ofício de arquitetura — mas também pretexto para autoinspeção, auscultando o quanto do pensar existe no fazer. Nesse sentido, o seminário criou a primeira ponte entre São Paulo e Rio de Janeiro, almejando expandir essa rede de conexões pelo Brasil afora, nas futuras edições. O tema do seminário, “São Paulo recebe o Rio: preexistência e o tempo” debruça-se sobre os vários entendimentos do conceito de preexistência a partir das práticas da nova geração de arquitetos que se destacam nas duas cidades. O seminário, assim como os textos que resultaram a posteriori, e que fazem o corpo deste Dossier, representam uma oportunidade para traçar e inscrever no tempo, com a indeterminação específica de uma produção “em gestação”, as características dessa nova geração.
Essa reflexão ganha relevância no contexto atual, onde se faz necessário questionar os padrões e repensar os meios de produção arquitetónica, de maneira a responder aos novos desafios colocados pela contemporaneidade.
Hoje, estamos a olhar para um futuro de incertezas e contradições que sinaliza novamente uma mudança de paradigma, vinda de uma alteração na base produtiva da sociedade, assim como o movimento moderno o fez, pouco mais de 100 anos atrás. O livro Vers une Architecture foi um marco na arquitetura moderna, que refletia o entusiasmo pela evolução tecnológica dos anos 1920. Contrapondo as ideias da época, Le Corbusier trouxe uma visão de vanguarda com a sua «máquina de morar», onde a casa e a arquitetura deveriam ser projetadas para atender às necessidades práticas e racionais do «novo homem moderno» que, assim como o arquiteto, representava a idealização de uma figura masculina por excelência. Essas ideias, no fundo de uma valorização da individualidade, contribuíram para uma certa deificação da figura do arquiteto, visto como criador de mundos, através de grandes gestos arquitetónicos. Nesse sentido, Brasília representa a súmula dessa visão moderna.
Figuras como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, ou Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, os mestres da geração passada, representantes das escolas carioca e paulista, deixaram um legado construído incontestável. Igualmente importante é o legado imaterial, dos circuitos pedagógicos por eles criados, que formaram novas gerações de arquitetos, munidos com as ferramentas que permitem um olhar crítico perante o mundo e a autoconsciência necessária para repensar o papel da arquitetura na sociedade contemporânea.
Essa mudança, na base produtiva da sociedade, é oriunda de um movimento profundo que vem acontecendo na contemporaneidade, questionando a hegemonia dos cânones estabelecidos na produção do conhecimento. Numa visão descolonizadora e democrática, «de baixo para cima», essa inversão epistemológica — geralmente promovida por territórios do sul, entendidos hoje como produtores de uma cultura própria — coloca em causa a divisão geopolítica e socioeconómica mundial, apontando para a necessidade da criação de novos paradigmas, através de um olhar sensível e inclusivo. Hoje, o avanço da tecnologia não é visto mais com o mesmo entusiasmo dos anos 1920, mas sim com a desconfiança e o receio de um possível colapso, ambiental e político. A resposta para um cenário de crise parece vir dos territórios historicamente apagados que, através da sua resiliência e particularidades culturais, se tornaram laboratórios para o desenvolvimento de uma visão crítica, focada na emancipação social e na justiça, promovendo o diálogo entre diferentes formas de saber.
Essa nova geração, frente a um cenário de crise e de fragilidade da existência, entende que fazer arquitetura é questionar as premissas e os meios, desta forma experimentando um outro modo de pensar e fazer arquitetura. A pequena escala é mais que o aspeto de uma sobredeterminação socioeconómica de mercado, torna-se dispositivo de experimentação e reinterpretação, matéria-prima para a criação de futuros possíveis. Através da sensibilidade do olhar, a pequena escala favorece o enxerto de uma perceção outra, um deslocamento do pensamento, que reestrutura as formas de subjetividade. O descartável ganha nova vida, o banal torna-se protagonista, o imprevisível faz repensar a linearidade do processo. Esse deslocamento, seja ele físico, conceitual ou temporal, constitui-se como método operativo, como estratégia que permite olhar por outra lente. Quando feito em coletividade, esse espaço compartilhado, de suspensão do pensamento, leva a criação de pontes que se conectam de forma rizomática.
Se antes, a figura do arquiteto moderno era cultuada na sua individualidade, hoje é a colaboração que fortalece os meios. Se o avanço tecnológico e económico da cultura ocidental se personificou numa figura masculina por excelência, o possível colapso desse sistema de valores faz questionar e refletir: será necessário pensarmos um futuro assente em características femininas? Essa geração de arquitetos e arquitetas, cujas reflexões fazem o corpo deste Dossier, parece entender bem que uma possível resposta para um cenário de incertezas e contradições reside na coletividade, na troca e na sensibilidade do pequeno gesto. Se o futuro vai ser coletivo e feminino, cabe a nós, arquitetos e arquitetas, repensar o nosso papel e entender como isso reflete na criação de novos meios de pensamento e produção da arquitetura.
Notas
[1] 13a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, 27 de maio – 17 de julho de 2022 [Disponível online: https://iabsp.org.br/bienal/travessias/].
[2] SLONEANU, Delia – A terceira margem do rio: residência para a embaixada de Portugal em Brasília. Estudo Prévio 25. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, novembro 2024, p. 48-82. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/24.1