PDF Repositório UAL

Juliana Godoy

juliana@julianagodoy.com

Arquiteta, São Paulo-SP, Brasil.

 

Mariana Meneguetti

marianavmeneguetti@gmail.com

Arquiteta e pesquisadora, co-fundadora do grupo Entre, mestre em Arquitetura – Teoria e História do Projeto (2021) pela PUC-Rio, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

 

 

Para citação:

GODOY, Juliana; MENEGUETTI, Mariana – Preexistência Efémera: Expografia – a subjetividade como método construtivo | A permanência e o Tempo – notas sobre o efémero. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 146-154. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.14

Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 30 de maio de 2025.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Preexistência Efémera: Expografia – a subjetividade como método construtivo | A permanência e o Tempo – notas sobre o efémero

 

Resumo

A preexistência pode ser concebida como um estado transitório—um espaço que se reinventa, um conceito que nunca se fixa inteiramente. Sob essa ótica, as arquitetas Juliana Godoy e Mariana Meneguetti são convidadas a explorar a arquitetura como um campo de constante revisão, onde formas, textos e objetos existem não para se cristalizarem, mas para se transformarem. Trata-se da construção de um lugar momentâneo, sempre aberto a novas interpretações e possibilidades.

No estúdio Juliana Godoy, a expografia se apresenta como um campo de experimentação arquitetónica efêmera, onde os espaços expositivos são concebidos como processos dinâmicos e modulares, promovendo interações fluídas entre materialidade, conceito e público.

Para Mariana Meneguetti, o conceito de “Preexistência Efêmera” propõe uma reflexão sobre a arquitetura como um campo de tensão entre permanência e transformação, onde a materialidade, a memória e o território se entrelaçam para questionar as relações entre natureza, cultura e temporalidade.

 

 

Palavras-chave: preexistência, efemeridade, experimentação, coletivo, expografia.

 

Expografia: a subjetividade como método construtivo |

Juliana Godoy

 

 

 

Os processos expográficos têm-se revelado como oportunidades para pensar a arquitetura como um estalo de ideias — frequentemente distante de conceitos mais consolidados e estáticos — precisamente porque não se pretende perene. Prática de imaginação coletiva, nos colocamos na condição de interlocutor juntamente com grandes equipas que envolvem diversas linguagens como curadores, artistas, designers, museólogos e iluminadores.

Denominada a primeira fagulha do projeto, o coletivo debruça-se nesta provocação, a fim de que o espaço, assim como evidentemente as obras de arte, possam responder a esse conceito de forma a convidar o público a se sentir também personagem dessa pequena enciclopédia e/ou ficção que ali iremos desenvolver.

Nesse sentido, o conceito do efémero surge como um convite à radicalidade no processo da arquitetura, uma vez que as expografias podem ser vistas como experimentos de futuros dissidentes. Onde hipóteses propostas pela equipe, muitas vezes completamente especulativas de formas de estar no mundo, podem ser colocadas em prática no plano dos conceitos espaciais. Não se trata de cenografar a teoria, mas sim de imaginar uma arquitetura com seus próprios novos conceitos que dialoguem junto dela.

Para o projeto para a 1ª Bienal das Amazónias, com curadoria de Keyna Eleison e Vânia Leal, que esteve em cartaz em Belém em 2023, sob o título Bubuia: Águas como Fonte de Imaginações e Desejos, o conceito teórico foi inspirado na obra do poeta João de Jesus Paes Loureiro, que defende o dibubuísmo amazónico, uma referência às relações entre as águas e as diferentes vidas que habitam o território da floresta, onde “estar de bubuia” é amarrar a canoa num tronco de árvore e deixar que o fluxo do rio conduza e controle o tempo da jornada.

É deste ponto de vista que o tema da exposição, e também a expografia, se desdobram, sobre como o fluir das águas entre os territórios amazónicos que os conecta. Um pensamento curatorial que procura compreender quais os fatores que ligam os artistas que, além de nascerem na mesma região, lidam com a natureza, vivem nela ou a refletem. Essa intersecção é dada pela questão da água e os seus contornos, que influenciam o projeto expográfico e também os diferentes cotidianos de quem habita aquele lugar. Assim, a expografia tem como ponto de partida um espaço que seja fluído como um rio, que fuja da rigidez e da obviedade, que não seja hermético ou que se trate unicamente de exibir as obras de arte sistematicamente.

Com esse mote como pesquisa entre todas as equipas, o projecto convida o público a confluir de bubuia por todo espaço da mostra. Na entrada, um grande redário recebe os visitantes, a primeira parada é sentar e observar. Cortinas em tecidos naturais de algodão com tonalidades terrosas correm pelo espaço em formatos curvos, carregam obras suspensas no seu caminho, desenham os ambientes, criam salas para vídeos. Painéis em estrutura mista de madeira geram espaços expositivos e são suportes de obras bidimensionais. A contraposição entre o fluir dos rios e a materialidade das construções ribeirinhas surge subtilmente pelo caminho. Tudo flutua, nada toca completamente o chão.

Figura 1Bienal das Amazônias (Foto: Juliana Godoy).

 

 

A exposição ocorreu num edifício, que anteriormente abrigava uma grande loja no centro da cidade, com aproximadamente 8 mil m2 distribuídos em 4 andares, com configurações distintas e diferentes pés direitos. Para sua ocupação desenvolvemos sistemas estruturais pensados de forma construtiva modular, tanto para os painéis – as estruturas são todas de encaixe e trabalhadas dentro da modulação das chapas de MDF, permitindo a desmontagem e novas montagens -, como para as cortinas, em que as estruturas se desconectam e formam salas menores, que podem se adaptar a outros espaços. No momento, a Bienal está na 5ª itinerância da edição por entre cidades da Amazônia com os mesmos sistemas, que podem ser facilmente remontados e reutilizados.

Nesse mesmo caminho, que interseciona as questões extremamente conceituais, desenvolvidas coletivamente entre equipes e os pensamentos estruturais e de reutilização das peças em outros espaços, desenvolvemos o projeto para a exposição Fullgás — Artes visuais e anos 1980 no Brasil. Um amplo panorama das artes brasileiras dos anos 1980 que mostra o empenho da geração em pensar novos projetos de país e de cidadania. Assim nasceu Fullgás, cujo título nos lança diretamente para a canção de Marina Lima, composição de Antonio Cícero, que embalou todos esses anos. Cerca de 300 obras de mais de 200 artistas brasileiros e que ocupará as 4 unidades do Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte).

Com quase 1000 m2 em todas as edições, a expografia de Fullgás se estabelece por um único piso, inteiramente roxo, que unifica as salas com diferentes dimensões e configurações espaciais. Os mobiliários partem de uma pesquisa intensa e atenta ao universo da época: os perfis metálicos tubulares, os suportes expositivos sólidos das TVs de tubo e a profusão de fluorescências, backlights e uma contundente palete cromática. A colagem desse vocabulário visual, composto por elementos até então dispersos, se transforma na linguagem que permeia toda a exposição.

É importante pensarmos aqui, que o ritmo constante em que as exposições acontecem nas instituições culturais, faz com que, em muitas circunstâncias, a efemeridade se transforme numa armadilha conceptual. Afinal, apesar de serem propostas mais fluidas, que serão desmontadas e repensadas num curto período de tempo e, por esse motivo, tenham uma vocação mais livre, é justamente aqui onde se produzem constantes e imensos casos de descarte. Nesse sentido a escolha de cada material e sistema construtivo a ser adotado para cada situação, torna-se tão importante quanto a liberdade criativa de cada projeto.

Sete peças específicas de mobiliário foram desenvolvidas de acordo com as necessidades do que seria exibido; esses objetos também são responsáveis por designar os nomes dos núcleos da exposição e seus respetivos textos em caixas de backlights. Todas essas estruturas são modulares e remontáveis, facilitando assim o transporte entre as cidades e o pensamento diverso do layout de acordo com cada situação.

Figura 2Fullgás — Artes visuais e anos 1980 no Brasil, 2024 (Foto: Rafael Salim).

 

 

A permanência e o Tempo: notas sobre o efémero |

Mariana Meneguetti

 

 

Ao me debruçar sobre a ideia do que viria a ser uma preexistência efémera, encontrei-me diante destes dois conceitos supostamente antagónicos – a preexistência e o efémero -, mas que, em sua origem, partem do mesmo lugar. Porque, para um modo de fazer arquitetura, tudo o que preexiste é efémero por si só. Na prática, a disciplina reitera a superação de uma existência anterior em prol de uma outra “melhor”, insistindo no triunfo do futuro sobre o passado, da cultura sobre a natureza, ou do humano sobre o não-humano – se utilizando do projeto como ferramenta de transformação.

Em uma semana de catástrofes climáticas, em que o Brasil estava coberto por uma obscura nuvem de fumaça gerada pelas cinzas dos incêndios que se alastravam pelo país (São Paulo, 13 de setembro de 2024), pareceu inevitável refletir uma inversão do modo de pensar e praticar o meio – e olhar criticamente para a própria prática – mesmo que desconfiada de minhas próprias ações. Em outras palavras, é possível inverter as premissas do que permanece ou desaparece, experimentando um outro modo de pensar e fazer arquitetura?

Falar a partir daqui é abrir o campo para refletir também através de disciplinas que, para mim, caminham juntas. Seja a partir do texto, da fotografia, da exposição, da arquitetura, da construção ou outro meio, ou linguagem. Dito isso, começarei pelo texto. Escrevi “Tempos se entrelaçam na exposição TAIB: Uma história do teatro” [1] onde a preexistência – um teatro que existiu entre as décadas de 1960-80 no subsolo da Casa do Povo, em São Paulo – se faz presente a partir de uma estratégia de disposição da expografia que reutiliza elementos próprios do teatro e do mobiliário original, provocando uma experiência não linear do espaço e do tempo. Passado, presente e futuro se entrelaçam a partir da narrativa contada pela expografia no prédio onde o teatro existiu, deslocando o sentido efémero do teatro original para a sua força, permanência e resistência nos tempos atuais.

Por outro lado, no mobiliário “Cadeiras para Lilly Reich” [2], a memória da arquiteta e designer alemã Lilly Reich – apagada na metade do século XX pelos críticos na sua colaboração com o arquiteto Mies van der Rohe – é reivindicada no presente. Isso surge a partir da inserção de fotografias das suas obras em mobiliário com um design que estimula o uso coletivo, mas também evoca o orgânico, como era característica do seu trabalho. Como um relicário que guarda imagens antigas, o mobiliário propõe uma homenagem, evocando o sentido perene da sua obra para o presente coletivo.

Para mim, é possível perceber que uma reflexão sobre a arquitetura não se encerra nela mesma, mas inclui e incorpora outros meios. O efémero torna-se um dos indícios de leitura que coleciono sobre a cidade, como a imagem do monumento borrado e as estruturas frágeis de andaime na Oca, de Oscar Niemeyer (ver Figura 3). A fragilidade do monumento e a crítica à memória histórica brasileira são interesses que se vão construindo gradualmente, na relação entre disciplinas e no cruzamento entre o efémero e o permanente, entre o que permanece e o que desaparece da história da arquitetura.

No projeto da “Casa Mulungu” [3] a preexistência da árvore mulungu, existente no meio do terreno, torna-se o elemento central e fundador do desafio de projeto. Era de interesse deslocar o sentido de fragilidade e força; efémero e permanente; natureza e cultura. O conceito de fragilidade da arquitetura, por sua vez, foi pensado através da estrutura, como na inserção de estruturas metálicas, que como finas escoras, compartilhariam o peso com robustos pilares de concreto. Enquanto isso, a árvore mulungu aparece como força no pátio central da casa (ver Figura 4).

Imaginar relações possíveis entre natureza e cultura está presente em outra arquitetura. Na Aldeia Maracanã [4], fiz uma fotografia onde uma árvore funciona como sombra e cobertura para um espaço livre, mas também como pilar central da construção, sendo incorporada para dentro do espaço como parte fundamental (ver Figura 5). Uma estrutura secundária de oito pilares ao redor desta árvore, dão apoio a uma série de vigas de madeira que tem como suporte primário a árvore no centro. A árvore assume o papel de um pilar de concreto, enquanto a estrutura espacial do esqueleto arquitetónico se dissolve, invisível. Quando vejo uma árvore cumprindo a função de uma estrutura no centro dessa arquitetura, eu interpreto isso como um pensamento muito fundamental porque essa ideia propõe outras formas de se relacionar com o mundo. Fazer arquitetura é também estar em profunda relação com aquilo que a questiona, com o que a faz desaparecer. O efémero é permitir que o meio seja outra coisa, que exercite outras linguagens, que se funde, temporariamente, outras realidades.

Como exemplo, gostaria de falar de uma casa que durante algum tempo eu tenho voltado a olhar: a Casa Elza Berquó (1967), de Vilanova Artigas, em São Paulo (ver Figura 6). Nela, quatro pilares de distintas seções de árvores formam um quadrilátero, apoiando uma única laje de concreto com uma abertura igualmente quadrada no meio. Permite-se que chova dentro. Esse deslocamento de dispositivos foi exercitado, por exemplo, no projeto da Casa em Montes Claros [5]: duas árvores assumem a função de pilares, camuflando-se entre a arquitetura e o jardim que as cerca. A arquitetura se confunde com algo outro. Passa a ser ela mesma um galho, uma folha ou parte da paisagem.

Esse é o mesmo sentido que encontro observando a cidade. Como, por exemplo, ao perceber na rua um tronco de árvore sendo escorado por uma estaca de madeira cortada por alguém. É a estaca que sustenta a árvore, ou é a árvore que sustenta a existência daquele pedaço de madeira ali? Isso pode provocar uma série de experimentos para incorporar essa perceção no projeto, por exemplo. Interessa-me uma casa que inclui à sua estrutura uma escora que apenas “completa” um grau de sustentação ao resto da construção. Incorporar a fragilidade ou leveza à arquitetura é aderir a outras formas de estar no mundo.

A efemeridade humana, a fragilidade da matéria, um vestígio de memória seriam traços, indícios, de um outro modo de fazer arquitetura? Este deslocamento de sentidos sugere a reinvenção dos modos de pensar e agir sobre o espaço. Seja entre o perene e o efémero, o dentro e fora, ou o forte e o frágil, que podem se deslocar ou se confundir sugerindo outras realidades ao meio. Diferente de uma tentativa de solucionar um problema, essa proposição procura manipular dispositivos sensíveis de modo a inverter modos de pensar e fazer. A arquitetura, para mim, tem esse potencial – que, através das palavras, desenha também um palco para o exercício livre da imaginação e da reflexão de mundos.

Figura 3Oca, 2022 (Foto: Mariana Meneguetti).

Figura 4 – Casa Mulungu, 2020 (Foto: Federico Cairoli).

Figura 5Aldeia Maracanã, 2018 (Foto: Mariana Meneguetti).

Figura 6 – Casa Elza Berquó, 1967. (Foto: Nelson Kon)

Notas

[1] “Tempos se entrelaçam na exposição TAIB: Uma História do Teatro”, sobre o Teatro de Arte Israelita Brasileiro que contou com a expografia do coletivo Goma Oficina, na Casa do Povo em 2024. Link: https://www.archdaily.com.br/br/1005398/tempos-se-entrelacam-na-exposicao-taib-uma- historia-do-teatro-realizada-pelo-coletivo-goma-oficina

[2] Cadeiras para Lilly Reich, 2024. Realizado em parceria com Julia Retz.

[3] Casa Mulungu, 2019. Realizada em parceria com Gregório Rosenbusch.

[4] Aldeia Maracanã, 2018. Publicado originalmente no livro “8 Reações para o Depois”, de coautoria com Ana Altberg e Gabriel Kozlowski.

[5] Casa em Montes Claros, 2019. Realizada em parceria com Gregório Rosenbusch.