PDF Repositório UAL

Julia Peres

contato@juliaperes.co

Arquiteta, urbanista e pesquisadora, São Paulo-SP, Brasil.

 

Vitor Garcez

estudio@vitorgarcez.com

Arquiteto, sócio do Estúdio Vitor Garcez, mestre em Arquitetura pela FAU-UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

 

 

Para citação:

PERES, Julia; GARCEZ, Vitor – Preexistência e Recursos: A reinterpretação do construído; Notas sobre arquiteturas possíveis. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 126-135. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.12

Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 28 de maio de 2025.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Preexistência e Recursos: A reinterpretação do construído | Notas sobre arquiteturas possíveis

 

Resumo

A preexistência pode ser compreendida não apenas como um dado material ou histórico, mas como uma postura política e uma condição inescapável no campo arquitetónico. Com essa abordagem, os escritórios Julia Peres Arquitetura e Estúdio Vitor Garcez são convidados a refletir sobre suas práticas a partir de uma preexistência que antecede o próprio processo projetual — um pensamento que guia o trabalho antes mesmo de sua conceção formal. Trata-se da ideia de uma obra a ser descoberta, revelada por meio da interação entre espaço, tempo e contexto sociopolítico.

Julia Peres entende que a preexistência na arquitetura se revela como um processo contínuo de resignificação e adaptação dos recursos disponíveis, onde construir sobre o construído se torna um ato transformador que tensiona permanência e transitoriedade, promovendo abordagens regenerativas e circulares.

Na conceção do Estúdio Vitor Garcez, a arquitetura contemporânea enfrenta a necessidade de reinterpretar preexistências e recursos, adotando estratégias que valorizam a continuidade, a reutilização de materiais e a adaptação aos contextos, promovendo soluções possíveis dentro das limitações sociais, econômicas e ambientais.

 

 

Palavras-chave: preexistência, recursos, transformação, estratégia, materiais.

 

A reinterpretação do construído |

Julia Peres

 

 

 

Quando nos deparamos com o tema preexistência e recursos, atravessamos a relação entre a arquitetura e o seu contexto de inserção, na interseção entre passado, presente e futuro. Esses entrelaçamentos se propõem através de alternativas de novas investigações, cada vez mais necessárias quando articulamos outras epistemologias do pensamento e prática no nosso campo de atuação. Ao reinterpretar as preexistências e os recursos intrínsecos aos ambientes em que se habita, a arquitetura contemporânea emerge como uma prática transformadora. Essa perspetiva não se restringe a uma simples reconstituição dos vestígios, fragmentos e artefactos do que foi, mas se configura como um exercício contínuo de desconstrução e reconstrução, no qual a memória dos espaços se converte em matéria-prima para a criação de futuros possíveis.

Diante de um cenário global em que o consumo de recursos naturais, a extração em massa e o impacto da construção civil, vem sendo pauta constante em discussões sobre alternativas a se pensar o processo da arquitetura, seria possível dialogar com a possibilidade de promover mudanças radicais na forma como entendemos o processo de desenvolvimento da arquitetura, o seu método e o próprio estaleiro?

Ao refletirmos sobre o termo, deparamo-nos com um verdadeiro guarda-chuva de significados: equipamentos, pessoas, recursos financeiros, materiais e espaciais. Ao aprofundarmos a reflexão, ampliamos o seu significado para abarcar não só o material e o económico, mas também o temporal, o emocional e o sensorial. Até então, a demolição não era compreendida como parte deste léxico, ou pelo menos, causava um estranhamento. Entretanto, ao questionarmos a ideia de um mundo-cidade consolidado em que a arquitetura se propõe a dialogar com o que já existe, construir sobre o construído — explorando o que chamamos das minas urbanas — torna-se um exercício crítico de re-investigação das memórias e preexistências, repletas de narrativas e camadas de significados.

Historicamente, a demolição foi concebida como o antónimo da criação, simbolizando o fim de um ciclo e a negação do que tinha sido edificado. O ato de construir já não pressupõe um modelo baseado na desconstituição de um lugar ou na manipulação de uma preexistência já consolidada. Se a arquitetura é atravessada maioritariamente pela demolição, os ditos recursos já não estariam à disposição da cidade, nos estaleiros, nas obras, no que consideramos descartável?

O centro de São Paulo é produto de uma série de ocupações lideradas por movimentos sociais de luta por moradia que ocupam edifícios vazios nos centros urbanos. Edifícios esses que se encontram no limbo entre o processo de demolição ou retrofit. Assim, os movimentos retomam a sua função social a partir de reformas – não retrofits – autogeridas por mutirões com os recursos ali disponíveis – materiais, ferramentas e pessoas -, transformando-os em habitações e num exemplo de arquitetura contemporânea que incorpora a preexistência e os recursos, de acordo com seu contexto. Combina-se uma prática ligada a necessidades sociais, ambientais e culturais com políticas públicas, vislumbrando uma real possibilidade de transformação dos grandes centros urbanos — bem como da sua escalabilidade e replicabilidade — quando essa articulação é compreendida como metodologia. Este movimento já é um exemplo de arquitetura e paisagismo regenerativo na cidade, ferramenta para oferecer infraestrutura adequada que busca potencializar e aprimorar o que já é desenvolvido pela comunidade (Figura 2).

O recurso, portanto, não é apenas um meio, mas um catalisador de novas abordagens. Do processo de conceção à execução, múltiplas camadas influenciam e são influenciadas pelas decisões projetuais, dos processos sociais e culturais que ditam um contexto numa comunidade. Não existe um roteiro a ser seguido – trata-se de um exercício constante de re-investigação de memórias e preexistências — não com o intuito de criar mundos paralelos, mas de construir mundos capazes de coexistir. Lidar com contextos singulares, faz-nos refletir sobre a não-padronização dos processos e entender a arquitetura prática como uma ação transformadora desses espaços, a partir da ideia de experimentação.

Permite-se assim, transitar entre método e experimentação, regra e exceção, tornando-se possível absorver o erro como parte essencial dessa ação-criação. Tal abordagem questiona os limites do fazer arquitetónico e propõe uma prática mais adaptável e aberta ao erro como elemento de aprendizagem. Assim, podemos perguntar: o projeto encerra-se no desenho? A necessidade do projeto em funcionar como um processo aberto a ajustes, modificações e até mesmo novas soluções durante a sua execução, em escalas maiores ou menores, ocorro de forma constante.

Desse modo, a inversão da ordem projetual, proposta como alternativa à rigidez dos métodos convencionais, impõe uma nova forma de pensar o espaço. Nesse modelo, o desenho, o espaço e as decisões coexistem. Tal abordagem possibilita que a arquitetura se revele não somente como uma resposta funcional às necessidades contemporâneas, mas também como uma experiência de resgate com o passado ancestral, onde passado e futuro se entrelaçam num diálogo contínuo.

Ao integrar saberes tradicionais com inovações tecnológicas, a arquitetura contemporânea deixa de olhar para o passado como um entrave e passa a reconhecê-lo como um repositório de conhecimento e possibilidades. Resgatar técnicas construtivas ancestrais e valorizar os materiais e a sua essência permite estabelecer um diálogo entre o local e o global, o natural e o artificial, o tangível e o intangível. Cada fragmento carrega a oportunidade de ser resignificado e reintegrado no tecido urbano, respondendo às exigências do presente sem romper os vínculos com a história.

Buscar respostas a essas novas demandas, nesse contexto, faz-nos questionar sobre o sistema linear produtivo que provou ser falho e uma ameaça à sobrevivência do planeta – meio fundamental para tensionar essas questões e propor alternativas ao modelo vigente de produção, direcionando-o a modelos circulares de existência. Como defendem McDonough e Braungart em Cradle to Cradle, a natureza opera com base num sistema de nutrientes e metabolismos em que o desperdício é inexistente. Porque não, então, desenvolver uma lógica de projeto que se inspire nessa mesma inteligência ecológica?

Quais são as decisões para se desenvolver, a partir dos recursos disponíveis, um projeto que exponha tal visão de mundo e responda diretamente às condições particulares e a potenciais transformações das condições que a arquitetura, no seu campo ampliado, vem enfrentando? Trata-se de um processo que não apenas adapta, mas desafia paradigmas estabelecidos, tensionando a relação entre permanência e transitoriedade na arquitetura. Esse processo exige uma postura política e reflexiva sobre o que se preserva, o que se resignifica e o que se transforma. Desaprender para aprender de modo a gerar cadeias de processos cada vez mais circulares enriquecendo os nossos recursos quando arquitetos.

Figura 1 – Tijolos de Entulho (Foto: Julia Peres).

Figura 2Ocupação 9 de Julho (Foto: Victor Delaqua). 

Notas sobre Arquiteturas Possíveis |

Vitor Garcez

 

 

Diante da crise climática evidente, o tema que nos coube apresentar coloca a necessidade de repensar a exploração de recursos materiais e de reduzir a produção de resíduos na construção civil. Temos procurado abordar este tema em alguns projetos recentes e, neste contexto, pretendemos partilhar algumas reflexões sobre como esta nova realidade nos exige novas estratégias de projeto, articuladas com uma experiência de obra particularmente singular.

 

 

1. Existências

Há uma diferença fundamental entre preexistências e existências. Enquanto a noção de preexistências estabelece uma linha divisória entre o passado e o presente, sugerindo que o projeto atua sobre um dado fixo – algo que vem antes e que precisa ser analisado e adaptado –, a ideia de existências enfatiza a continuidade, reconhecendo que os espaços não são apenas um suporte estático, mas algo em constante transformação.

Projetar a partir das existências não é apenas intervir sobre um suporte fixo, mas instaurar novas relações e desdobrar um processo que já está em andamento. A complexidade do processo de projeto está justamente no fato de que cada decisão modifica a própria existência inicial, na medida em que ela própria é uma interpretação. Cada decisão modifica o próprio campo das alternativas, transformando a realidade em algo que antes não existia. Assim, um projeto não apenas responde a um contexto, mas instaura uma nova realidade que nunca é plenamente controlável, revelando possibilidades, muitas vezes inesperadas.

 

2. “Um pouco de possível, senão eu sufoco” [1]

A arquitetura não é um produto acabado, mas um sistema técnico em evolução, no qual materiais, formas e usos se transformam ao longo do tempo. O filósofo Gilbert Simondon chama de “individuação” [2] o processo contínuo de atualização, no qual um sistema se constitui a partir de tensões e relações internas em resposta ao meio – como em um organismo vivo. Entretanto, enquanto um organismo vivo é perfeito, no sentido em que é um produto do meio, um objeto técnico – como é a arquitetura – é incompleto, precário e limitado.

O projeto “possível” não implica um conjunto de opções pré-existentes ou caminhos que podem ser escolhidos, mas é algo que emerge da própria interação entre projeto, contexto e tempo. Ele não é imposto ao meio, mas em certa medida instaurado por ele.

Figura 3 – Diagrama de um processo (Acervo dos autores)

 

 

3. Recursos mensuráveis e imensuráveis

Fazer projeto implica lidar com recursos sempre finitos, mas que nem sempre podem ser precisamente mensurados. O orçamento e os materiais são variáveis objetivas e quantificáveis, mas há outros elementos essenciais que escapam aos números: o envolvimento dos agentes no processo, a energia investida na obra, a capacidade de adaptação diante dos imprevistos. A arquitetura não se constrói apenas com recursos tangíveis, mas também com forças imateriais que moldam seu percurso e seu resultado.

No contexto da prática de um jovem escritório no Brasil, o sucesso de um projeto exige um alto grau de envolvimento de todos os envolvidos – arquitetos, clientes e operários. Ao mesmo tempo, enfrentamos a dificuldade de consolidar uma prática com estabilidade e previsibilidade. No entanto, sem fazer um elogio à precariedade, é preciso reconhecer que essas circunstâncias podem levar a soluções interessantes. Em alguns casos, a mobilização de recursos imensuráveis – como a dedicação e o comprometimento dos envolvidos – pode tornar viável o que, à primeira vista, parecia impossível. A casa que descrevemos a seguir talvez seja um exemplo disso.

Figura 4 – Casa em Botafogo (Foto: Acervo dos autores)

 

 

 

4. Casa em Botafogo

Em 2021, durante a pandemia de COVID-19, iniciamos as obras de uma pequena casa dos anos 1930 no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, pertencente ao meu cunhado e à minha irmã. A classificação das fachadas como património municipal impunha restrições ao projeto, enquanto o orçamento extremamente limitado (1.500 reais ou 250 euros por metro quadrado) comprometia as possibilidades de execução. O projeto percorreu diferentes caminhos e poderia ter seguido muitas direções, mas, no final, optamos por uma reforma profunda, reorganizando completamente a estrutura para criar um espaço com qualidades de integração, abertura e indeterminação. No entanto, essa decisão veio acompanhada de um grande receio de que não fosse possível concluir a obra.

Depois de muitas versões do projeto, decidimos iniciar a construção com um conjunto de plantas simples e um cronograma inicial para a execução, dividido em empreitadas. Começamos pelas demolições necessárias – removendo todas as paredes e lajes internas – e, no final dessa etapa, a casa praticamente deixou de existir, ficaram, apenas, as paredes externas.

A reconstrução procurou aproveitar ao máximo os recursos disponíveis: tijolos maciços das paredes demolidas foram completamente reaproveitados depois de manualmente limpos, materiais de obra foram doados por amigos e estruturas metálicas foram adquiridas no ferro-velho. Os recursos humanos também desempenharam um papel essencial, especialmente a participação dos proprietários que, por serem artistas e autónomos, passaram a dispor de mais tempo livre devido à pandemia e puderam atuar como serventes de obra, entre outras funções. Além deles, contamos com um único pedreiro na primeira etapa dos trabalhos, responsável pela construção das estruturas em cimento, paredes em tijolo e pré-montagem das estruturas em aço.

Felizmente, após aproximadamente um ano, grande parte da obra foi finalizada, tornando a casa habitável. Fazer arquitetura sempre implica riscos, de diversas ordens, mas, neste caso, o risco maior era desabrigar os meus clientes-familiares. Tenho que admitir que, em determinado momento da obra, temi ter feito exatamente isso.

 

Notas

[1] DELEUZE, Gilles – Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 131.

[2] SIMONDON, Gilbert – El modo de existencia de los objetos técnicos. Tradução de Margarita Martinez e Pablo Rodríguez. Buenos Aires: Ed. Prometeo Libros, 2008.