Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero
arq.vao@gmail.com
Brasileiros, arquitetos e urbanistas, sócios do escritório vão, São Paulo-SP, Brasil.
Thiago de Almeida e Priscila Bellas
thiago@agenciatpba.com
Arquiteto, sócio do Agencia TPBA e doutorando pela FAUUSP, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
priscila@agenciatpba.com
Arquiteta, sócia do Agencia TPBA e doutoranda pelo PROURB-FAUUFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
Para citação:
JUNI, Anna; WINKEL, Enk te; DELONERO, Gustavo; ALMEIDA, Thiago de; BELLAS, Priscila – Preexistência e abstração: Deslocamentos físicos, conceituais e temporais no pensamento projetual | O projeto dentro do projeto. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 96-104. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.8
Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 26 de maio de 2025.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Preexistência e abstração: Deslocamentos físicos, conceituais e temporais no pensamento projetual | O projeto dentro do projeto
Resumo
A ideia de preexistência na arquitetura pode ser compreendida na sua forma mais primordial: o instante em que a folha em branco se liberta do seu vazio impávido. Nesta perspetiva, os escritórios vão e Agencia TPBA são convidados a refletir sobre as suas práticas a partir de uma preexistência que precede o próprio projeto—uma ideia originária, enraizada num pensamento crítico e não na materialização arquitetónica imediata. Trata-se de um exercício que abrange a geometria, o esboço e a síntese como gestos iniciais de uma intenção ainda não verificada.
Para o vão, os deslocamentos físicos, conceituais e temporais surgem como estratégias projetuais que reorganizam perceções espaciais, permitindo uma reflexão crítica sobre a preexistência, a abstração e a construção de novas relações na arquitetura.
No caso da Agencia TPBA, a abstração opera, no projeto arquitetónico, como um meio de interpretar criticamente preexistências espaciais e contextuais, permitindo a reinvenção das condicionantes urbanas e históricas através de múltiplas camadas de reflexão e adaptação.
Palavras-chave: preexistência, abstração, estratégia, contexto urbano, deslocamento.
Deslocamentos físicos, conceituais e temporais no pensamento projetual |
Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero
Compartilhar o próprio trabalho (seja por meio de uma conferência, um texto ou uma entrevista) é sempre uma oportunidade de pausa para refletir sobre a produção realizada. Nesses momentos, a distância temporal revela questões que, apesar de sempre terem estado presentes, não poderiam ser percebidas no ritmo e na escala da atividade cotidiana.
Selecionar o que tem interesse de ser partilhado constitui um necessário exercício de olhar interno e revisitação. Ainda que projetos importantes para a nossa trajetória possam se tornar aparições recorrentes em nossas apresentações, os propósitos e o público de cada conferência exigem que suas narrativas sejam constantemente revistas, questionadas e reformuladas.
A curadoria de Na Ponte, contudo, não nos convidou apenas a expor os nossos trabalhos de maneira livre, como é costume. A apresentação deveria ser necessariamente desenvolvida a partir dos conceitos de “preexistência e abstração”. O enunciado nos provocava a repensar os nossos trabalhos a partir das conceções primárias, em uma tentativa de identificar a origem das ideias, das intenções e dos pensamentos críticos que alavancam os partidos projetuais.
No vão procuramos preservar uma liberdade projetual e experimental que resulta em um panorama de obras bastante diverso. Agrada-nos o facto de, entre os projetos, não haver uma repetição de gestos ou de linguagens materiais e espaciais, que permitam identificar facilmente um trabalho como sendo “nosso”. Por isso, a aproximação de projetos tão distintos sob uma única chave pareceu-nos, à partida, uma tarefa difícil de ser realizada.
Diferentemente das outras palestras, focadas em dois ou três projetos, nos propusemos, dessa vez, a sobrevoar os últimos onze anos, procurando identificar algumas interpretações sobre preexistências e abstrações. Essa ampliação temporal do olhar, somada à atenção para o que antecede as ideias, e não os seus resultados finais, fez-nos perceber, com muita surpresa, a existência de uma linha invisível que costura todos os projetos na sua conceção. A essa linha denominamos “deslocamento”.
Reconhecemos o “deslocamento” como uma estratégia intuitiva e reincidente que altera, de alguma forma, as premissas projetuais que nos chegam. Como se num certo momento da conceção, precisássemos tirar de foco ou abstrair momentaneamente as questões objetivas que nos foram trazidas, numa tentativa de libertar o pensamento antes de voltar novamente a atenção ao problema inicial do enunciado.
As três categorias de “deslocamentos” – físicos, conceituais e temporais –, identificadas ao longo dessa autoanálise, constituíram os binários conceituais aplicados sobre os trabalhos selecionados. A seleção, por sua vez, se deu através de dois critérios considerados importantes por nós para constituir esse panorama: a inclusão de trabalhos de naturezas diversas, que transitam entre os campos da arquitetura, do urbanismo e das artes plásticas; e a abrangência de um longo arco temporal, ao trazer tanto projetos recentes, quanto do início da trajetória.
O primeiro binómio, dos deslocamentos físicos-conceptuais, diz respeito às estratégias de projeto que surgiram a partir da subversão do local de atuação previamente proposto, como nos casos das instalações Subsolanus (2016) e Dissociação (2021).
Subsolanus, desenvolvido em coautoria com a arquiteta Marina Canhadas, foi resultado de um concurso internacional organizado por Liga DF, um espaço de exposição e reflexão em torno da arquitetura, localizado na Cidade do México. O edital solicitava uma instalação nos 15m2 do espaço expositivo, sob o tema ‘geometrias invisíveis’. Ao decidir trabalhar com o “ar”, a proposta materializou-se num dispositivo de mais de trinta metros de extensão, que percorria a empena cega do edifício para conduzir os ventos da cobertura até o espaço interior da galeria, no rés do chão. Ou seja, com a externalização da intervenção, o espaço expositivo foi preenchido unicamente com ar em movimento.
Já Dissociação resultou de um convite no âmbito do projeto Fachadas, da Galeria Vermelho, em São Paulo, onde artistas e arquitetos são convocados a intervir temporariamente na parede do projeto de Paulo Mendes da Rocha [1]. Implantado na praça interna da galeria pelo arquiteto, um poste de iluminação de nove metros de altura – muito comum em áreas públicas da cidade – nos levou a abandonar a intervenção na fachada. O deslocamento do poste, enterrado a vários metros de profundidade, aproximou a fonte de luz da escala humana, transformando a longínqua luz de luar em uma luz de fogueira, constituindo temporariamente uma nova centralidade na praça

Figura 1 – Poste enterrado. Dissociação (Foto: Mauro Restiffe).
Por vezes, a primeira ideia resultante de um deslocamento não se mantém no projeto final, mas abre caminhos para ele. É o caso do projeto expositivo para a 35a Bienal de São Paulo (2023). Na primeira versão propusemos realizar a exposição sob a marquise do Parque Ibirapuera: o perímetro do plano sinuoso seria extrudado por uma materialidade branca e lisa, transformando a marquise num volume. Após a inviabilização da proposta, transferimos o desejo conceptual de amalgamar o projeto expositivo com a arquitetura de Oscar Niemeyer e equipa [2] para o interior do Pavilhão da Bienal. Todo o desenho da expografia partiu, então, da manipulação da geometria do edifício, criando uma confusão entre o novo (temporário) e o existente (permanente). Assim como a marquise do primeiro projeto, o emblemático espaço do vão central foi envolvido por uma materialidade branca, tornando-se a ação mais notória do projeto (Figura 2). A conexão entre os tempos projetuais inseriu o projeto na chave dos deslocamentos conceituais-temporais, assim como a série dos cartões-postais Fim da Linha (2016).

Figura 2 – Poste enterrado. Dissociação (Foto: Mauro Restiffe).
Em vez de escrever uma carta ao então prefeito da cidade, como pressupunha a exposição Cartas ao Prefeito, idealizada pela Storefront for Art and Architecture, o trabalho Fim da Linha endereça 12 cartões-postais do presente para o passado, sendo o primeiro para 1867 e o último para 2016. Além dos textos, os cartões-postais são ilustrados por fotografias de lugares não turísticos da cidade de São Paulo, alertando os seus antigos gestores e gestoras para as consequências dos seus projetos e políticas públicas, como se o passado pudesse ser ainda alterado.
A Casa São José do Barreiro (2020), foi classificada como um deslocamento temporal-construtivo pois lida com a paisagem de uma pequena cidade histórica do Vale do Paraíba. Buscando construir um diálogo entre a casa e o contexto em que está inserida, a vivência estendida no local propiciou uma investigação sobre os saberes tradicionais, resguardados há décadas pelos construtores locais, guiando o projeto durante todo o processo projetual e construtivo.
E por último, Sede para uma Fábrica de Blocos (2016), definida por um deslocamento construtivo-conceitual ao pesquisar as antigas estruturas megalíticas, que trabalham à compressão, para criar um sistema construtivo não convencional, que dispensa o uso de argamassa entre os blocos de concreto. A estabilidade foi aqui garantida pelo aumento da espessura das paredes (1,20m de largura). Para além de tornar a obra numa montagem rápida, a construção seca abriu a possibilidade de reutilização no material no futuro, no caso de a construção ser desmontada e transferida.
Do espaço expositivo à fachada, da fachada à praça, da marquise ao pavilhão, do presente ao passado, do terreno à cidade histórica, do permanente ao impermanente – seis deslocamentos possibilitados pela abstração dos seus enunciados prévios, contudo, atentos a incorporar as características peculiares de cada local de atuação, investigando as suas histórias, memórias e preexistências.
O projeto dentro do projeto |
Thiago de Almeida e Priscila Bellas
Participar do Na Ponte [3] foi uma oportunidade valiosa de pausa e reflexão sobre a nossa prática de projeto e a maneira como fazemos arquitetura após os primeiros anos de atuação. Pudemos reforçar a perceção de como o conceito de “Abstração” — tema que nos foi atribuído em conexão com a ideia de “Preexistência”, o eixo central do evento — sempre esteve presente nas nossas discussões iniciais de projeto como uma maneira complementar de olhar para o contexto no qual operamos. Por essa oportunidade, somos profundamente gratos aos curadores, Joaquin Gak e Diego Portas, e a Guilherme Pianca, o mediador da nossa mesa-redonda com os amigos do vão, pelo entendimento preciso do que poderia ser uma nova lente de interpretação do nosso trabalho.
Ao iniciarmos a leitura do nosso trabalho pela ótica da Abstração e das suas diversas aplicações possíveis, decidimos, em primeiro lugar, subverter uma armadilha que identificávamos na sua combinação com a “Preexistência” — algo que, para nós, poderia assumir uma conotação negativa. Foi fundamental compreender a Abstração não como um fim em si, mas como um meio – uma forma mais livre de interpretar o nosso contexto de atuação contemporâneo, repleto de normas, exigências e agendas que deixam pouco espaço para a liberdade e a imprevisibilidade da vida. Nesse sentido, vemos a Abstração no nosso trabalho como uma maneira de lidar com essas limitações, abrindo caminho para interpretações não-tão-óbvias das preexistências, no desenvolver de respostas não-tão-lógicas que, no final, na nossa opinião, resultam na intensificação daquela mesma condição pré-existente inicialmente abstraída.
Chamamos essa interpretação do nosso trabalho de “O Projeto dentro do Projeto”. Esse título simboliza as múltiplas camadas de foco que podem existir dentro de um projeto, como uma forma de atingir as suas intenções principais frente às condicionantes de cada encomenda. Sendo assim, sentimos que é relevante iniciar o nosso argumento apresentando o contexto em que maioritariamente atuamos: comissões para reformas e ampliações de estruturas existentes, na maior parte localizadas em áreas urbanas densas no Rio de Janeiro e São Paulo. Esse cenário força-nos — pelo menos até o presente momento da nossa prática — a iniciar cada projeto a partir de algo que já está lá, seja esse algo positivo ou negativo em termos de qualidade espacial e construtiva. Dentro dessa conjuntura, a Abstração desempenha um papel crucial ao nos permitir interpretar criticamente tanto a relação com essas construções pré-existentes quanto com a cidade erguida ao redor, ajudando a evitar continuações gratuitas de um determinado contexto.
O nosso trabalho interessa-se em criar arquiteturas ambivalentes onde a vida possa acontecer de modo espontâneo. Portanto, é importante, para nós, criar proximidades, mas também estabelecer certa distância do que já está presente, a fim de encontrar momentos de ambiguidade dentro do diverso conjunto de limitações apresentadas por cada encomenda. Nesse sentido, gostamos de lembrar de projetos como o de Oscar Niemeyer para o piso de acesso do edifício para o Banco Boavista (1946), onde a necessidade de organização espacial e iluminação natural de uma agência bancária coincide com a intenção de transformar o hall de receção e atendimento num espaço indeterminado o suficiente para ser lido como público — mesmo sabendo que isto não seria completamente viável por se tratar de um domínio privado. Lembramos também o projeto de Le Corbusier para a cobertura de Charles de Beistegui (1929), em Paris, uma espécie de casa urbana elevada com grandes espaços abertos ajardinados, cuja intenção principal era criar um interior que “escapasse” do contexto urbano caótico de Paris, mas que, ao mesmo tempo, reforçasse a sua presença através dos seus monumentos mais emblemáticos. De muitas formas, consideramos preciosa essa possibilidade de inventar mundos paralelos onde um projeto possa também existir.
De forma semelhante, a Abstração também pode ser uma maneira de lidar com preexistências derivadas de contextos imaginários. Temos como imprescindível o entendimento da arquitetura enquanto um saber coletivo desenvolvido ao longo de gerações e, por esse motivo, é essencial, para nós, encontrar espaço, dentro de um projeto, para interagir com a história da arquitetura com a qual escolhemos nos relacionar, isto é; com o repertório de referências e obsessões que temos acumulado a partir do seu campo expandido. Não se trata de copiar algo de forma gratuita, mas de extrair uma essência e aplicá-la de maneira distinta num novo contexto. Não nos interessa a ideia de originalidade pura, mas sim alcançar algo novo a partir de um ponto deixado por outros, numa continuidade da disciplina. Para nós, é vital observar como mestres como Sérgio Bernardes e Vilanova Artigas tentaram, desde os seus primeiros trabalhos, responder simultaneamente às situações únicas de cada encomenda, ao mesmo tempo em que dialogavam com os recortes particulares da história e com a possibilidade dos projetos existirem em relação a um contexto imaginado de soluções e ideias precedentes, as quais um arquiteto pode escolher apropriar, relacionar e adaptar à sua realidade.
Por fim, ao atuarmos principalmente no contexto de reformas e expansões de edifícios existentes localizados em densas zonas urbanas [4], na tentativa de aprimorar o que já lá está e de lidar com as respetivas condicionantes, consideramos que a Abstração pode auxiliar na definição da medida precisa de arquitetura necessária para apropriação dessas estruturas preexistentes.
Diante das limitações e variáveis comuns ao processo projetual (orçamentos, expectativas dos clientes, requisitos funcionais, normas construtivas, etc.) e das condicionantes provenientes dos códigos sociais e das agendas produtivas da sociedade contemporânea, na qual estamos inseridos, consideramos importante estabelecer hierarquias dentro do projeto de modo a vislumbrar em que situações teremos algum controlo e em quais não teremos controlo algum. Na busca por onde focar a nossa atenção e onde relativizar a sua importância, a Abstração pode ser um bom caminho para encontrar o projeto dentro do projeto.

Figura 3 – TPBA – Casa Leblon (Foto: Javier Agustin Rojas).

Figura 4 – CLUBE e AGENCIATPBA – Restaurante JACO (Foto: Acervo dos autores).
Notas
[1] O projeto da Galeria Vermelho foi realizado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha em parceria com o Piratininga Arquitetos Associados. O espaço foi inaugurado em 2002.
[2] A equipa de projeto foi integrada também pelos arquitetos Eduardo Kneese de Mello, Hélio Uchôa e Zenon Lotufo. O espaço foi inaugurado em 1957 com o nome de Palácio das Indústrias. Hoje também é conhecido como Pavilhão Ciccillo Matarazzo.
[3] A primeira edição do ciclo de conversas Na Ponte: Preexistência e o Tempo, entre jovens práticas do Rio de Janeiro e São Paulo, aconteceu nos meses de agosto e setembro de 2024, na Escola da Cidade (São Paulo, Brasil).
[4] Na nossa apresentação para o Na Ponte, apresentamos projetos como a Casa no Leblon (Figura 01) e o Restaurante Jacó (Figura 02).