Guido D’Elia Otero
guido.otero@gmail.com
Arquiteto em Guido Otero Arquitetura. Doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura na FAU-USP, São Paulo-SP, Brasil.
Guilherme Pianca Moreno
guilherme@pianca.arq.br
Arquiteto na Pianca.arq. Doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura na FAU-USP, São Paulo-SP, Brasil.
Para citação:
OTERO, Guido D’Elia; MORENO, Guilherme, Pianca – Qual é o nosso endereço no tempo? Notas de aproximação à prática de uma geração. Estudo Prévio 26. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2025, p. 93-95. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/26.
Recebido a 14 de maio de 2025 e aceite para publicação a 26 de maio de 2025.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Qual é o nosso endereço no tempo? Notas de aproximação à prática de uma geração
Há uma particularidade na produção arquitetónica de profissionais por volta dos 40 anos: já existem caminhos relativamente consolidados, uma visão crítica sobre os testes e experimentos realizados até então, algumas certezas do que deseja fazer e, sobretudo, do que não se deseja reproduzir. Sem ainda submeter os projetos a uma fórmula ou metodologia rígida, os portfólios costumam já apresentar vocações ou, simplesmente, traquejos para certos assuntos – produzindo arquiteturas com um elevado grau de autoconsciência.
Este texto foi redigido a partir de uma posição ambígua: como mediadores e críticos das práticas apresentadas no encontro Na Ponte, mas também como arquitetos com atuação e escala de trabalho muito semelhantes às dos colegas. Um testemunho suspeito – pela proximidade e pelo tipo de trabalho desenvolvido – mas em posição privilegiada para reconhecer os desafios e questões que atravessam essa geração a partir de uma visão interna ao exercício da disciplina.
A maioria dos escritórios convidados a participar do evento iniciaram a prática profissional durante ou após a crise económica e política deflagrada na metade da década de 2010, que se desdobrou em processos de profunda alteração do Brasil. Assistimos, em tempo real, ao esgotamento dos contratos públicos, que ajudaram outras gerações a dar um salto de escala, voltando a nossa atuação para projetos privadas de pequena escala, ou projetos temporários. Projetos que, para gerações anteriores seriam trabalhos menores, que possivelmente não figurariam dentro de seus portfólios – como os interiores de um apartamento ou a reforma pontual de um estúdio de dança – agora adquirem nova importância, sendo carregados de significado e atenção.
Sem entrar demasiadamente em esquemas deterministas de como aspetos socioeconómicos incidem sobre a produção artístico-cultural, nos perguntamos aqui – o que a pluralidade de obras apresentadas no seminário Na Ponte nos dizem sobre o estado atual da prática arquitetónica? Em qual endereço estas práticas se fixam no tempo?
Uma abordagem possível para compreender esse conjunto bastante heterogéneo de práticas é a escuta dos discursos que conduzem as apresentações dos escritórios.
Notamos a presença de palavras como perceção, entendimento, intuição, diálogo, adaptação, tempo, trânsito, reciclagem, reuso, materialidade, imaginário, memória, lembrança, contexto, processo, experimentação, resistência, contradição e dicotomia. Estes termos — e a menor ênfase atribuída a outros, como rigor, ordem, verdade, industrialização, progresso, sistema ou estratégia de projeto — colocam-nos perante uma produção evidentemente em gestação, mas também diante de uma certa postura no fazer arquitetónico: uma posição que envolve o arquiteto no tempo presente e nas suas contingências.
Os materiais, neste contexto, perdem a sua verdade imanente, mas são resgatados nas visitas aos terrenos, na leitura atenta ao lugar, nos seus aspetos relacionais ou na busca pela construção de um novo imaginário. Eles são manipulados e testados, menos nas certezas dos laboratórios e mais pela imprecisão do artesanal, sendo significados pela ação e adquirindo qualidades dadas pelo tempo e pelo trabalho, que, neste caso, são processo e experimentação. Uma dimensão umbilicalmente ligada ao tema do encontro: o tempo é “Pré-existência”. Sem sua dimensão aurática, enquanto testemunho do que foi perdido, o que veio antes ou estava ali é trabalhado com a mesma intensidade dos materiais: o passado aqui não é ruína, é matéria.
De maneira semelhante, a “Forma”, enquanto matriz fundamental do projeto, também é tensionada. Em muitos dos casos, não se observa o grande gesto ou uma “Forma” facilmente identificável; indicando que a “Forma” não é um dado à priori, mas algo que emerge das condições e dos recursos materiais da construção. Assim, muitos dos trabalhos parecem fugir do esquema típico, da matéria revestir a forma primeiramente concebida, mas na direção reversa, a partir do material buscam-se as formas mais adequadas para realizar a arquitetura. Neste sentido, os processos e meios de produzir arquitetura parecem interessar mais que a fidelidade ao primeiro gesto ou mesmos do que o resultado final.
Frente, muitas vezes, à escassez de recursos para as obras, os arquitetos desta geração encontram saída na precisão conceitual e projetual dos componentes elementares da arquitetura.
Janelas, esquadrias, portas, coberturas, escadas, infraestruturas como calhas elétricas ou peças de mobiliário são meticulosamente trabalhados buscando aferir uma dimensão singular da arquitetura. Quer pela impossibilidade objetiva, quer pela ausência de vontade em conformar um todo único e coeso, a fragmentação da arquitetura em elementos revela-se uma estratégia recorrente em muitos dos trabalhos apresentados.
Muito arraigadas no tempo presente, estas arquiteturas encontram no solo, seja ambiente construído ou meio “natural”, um chão não para se contrapor, como em gerações anteriores, mas um espaço para se implicar. Vemos assim arquiteturas que se misturam à terra ou que intervém no construído sem medo de se amalgamar, por outros objetos que à primeira vista parecem parasitários mas que num exame mais detido revelam grande capacidade de regenerar estruturas comprometidas. É fato, as gerações recentes herdaram as sólidas e generosas estruturas do movimento moderno brasileiro as quais só resta ocupar, mas surpreende como este ato pode ser de irreverência ou subversão, atualizando intenções que reverberam espaços completamente renovados, mesmo com pequenas intervenções.
Essa vontade de produzir arquiteturas precisas para os seus contextos físicos parece dialogar com as pautas contemporâneas. Muitos trabalhos apresentados são do campo da cenografia, exposições e instalações – área de atuação marcada pelo diálogo com interlocutores de outras disciplinas e também com as agendas sociais, ambientais, políticas e culturais. Trabalhos onde o presente, nas suas múltiplas dimensões, é o assunto central. Evidenciam a importância das pequenas decisões, a atenção aos detalhes e formas específicas que a arquitetura pode assumir. Uma forte consideração das disponibilidades de recursos financeiros e materiais de um museu ou instituição – definindo um pragmatismo carregado de sensibilidade.
Finalmente, nas oportunidades de agir na esfera pública, aparece o forte desejo de apontar o mal-estar enfrentado pelo Brasil na última década – aproximando-se de movimentos sociais, ações de experimentação no espaço comum ou mesmo de preservação de prédios públicos em risco. São ações pequenas e concentradas, mas que evidenciam o caráter experimental dessa geração de arquitetos, apontando um discernimento e meios próprios de pensar a disciplina. A questão que permanece é: neste momento de tensão, crise e falência da esfera pública – que atravessa grande parte do mundo ocidental – como essas ações de otimismo dentro da disciplina da arquitetura podem ser amplificadas e reverberadas?