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Raquel Henriques

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Breve contribuição sobre Políticas Urbanas de Assentamento nos países em vias de desenvolvimento

– estratégias de planeamento e de gestão urbana para a formalidade –

 

O que o Processo de Planeamento não pode perder

O que o Conjunto tem de assegurar e promover

O que a Urgência determina e acrescenta

 

“*O artigo que se segue resulta, e baseia-se, nos contéudos da dissertação “Da Planificação e da Gestão Urbana: Políticas de Intervenção e Urgência no Terceiro Mundo – O Novo Bairro de Magoanine C”, desenvolvida pela própria autora, segundo a orientação do Prof. Dr.º Manuel Fernandes de Sá, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.”

 

A Informalidade

Panorama geral: a Cidade Informal nas Cidades Formais

“The first and most obvious thing about cities is that they are like organisms, sucking in resources and emitting wastes. The larger and more complex they become, the greater their dependence on surrounding areas, and the greater their vulnerability to change around them. They are both our glory and our bane.”1

 

Vivemos tempos de paradoxos sociais e de mudanças territoriais aceleradas. Segundo Ismail Seralgeldin a globalização, a homogeneização e as afirmações de especificidades ocorrem simultaneamente.2 Dos ínfimos pontos, na escala mundial, que são os locais onde vivemos, às grandes costuras da malha da macro globalização, as sociedades contemporâneas correspondem, hoje, a múltiplas combinações, não raras vezes sucumbidas ao desejo de serem tudo ao mesmo tempo ou desesperadas pelos retornos às origens tradicionais que resultam no resgate de expressões de identidade frequentemente pouco autênticas. O mundo, dito de aldeia global, é, porém, pouco promotor de desenvolvimento local. A competição entre forças locais e globais, dicotomias ora dialogantes ora contrastantes, reproduz os novos valores sociológicos do Homem contemporâneo e deriva nas formas desafiantes dos atuais mosaicos urbanos.

Assiste-se a um fenómeno de “esponjosidade” urbana. Submetidas a grandes excedentes populacionais, as cidades são como esponjas encharcadas e saturadas porque sem capacidade infraestrutural e habitacional para lhes responder. “Cidades-esponja”, ultra lotadas e espacialmente sufocadas, onde nada mais parece poder caber. Porém, não caberá mesmo? O fenómeno urbano denominado de crescimento informal responde afirmativamente à pergunta. Qualquer pedaço de terra, ou terreno, abandonado, ou baldio, ou quaisquer construções desocupadas, correspondem a espaços predispostos à instalação da avalanche de população urbana que busca abrigo. A insegurança, associada à ocupação clandestina, e a eventual instabilidade física dos terrenos, são aspetos secundarizados perante o elevado grau de necessidade. Os assentamentos informais surgem como a primeira resposta infligida às populações. Cabe, cabe sempre um pouco mais. Cabe porque tem mesmo que caber.

 

 

Esta saturação urbana, num mundo cada vez mais urbano, arrasta fenómenos de conturbada e acelerada expansão com consequências particularmente gravosas nos países em vias de desenvolvimento3. As instabilidades administrativo – políticas, as dificuldades económicas, a emigração rural e a explosão demográfica vigentes nessas regiões são fatores fecundos aos ambientes de informalidade que expõem os próprios habitantes a níveis de extrema precariedade social e ambiental. Diante da ausência de respostas urbanas e habitacionais, por parte do setor formal, que sejam ajustadas quer às capacidades económicas destas populações quer às taxas apresentadas, as mesmas veem-se obrigadas a encontrar um terreno onde possam construir a sua casa com meios próprios, com um empenho e um esforço titânico e marginal ao sistema institucional, que não deixam de corresponder a formas de perpetuação dos ciclos de pobreza. A pergunta que persiste é: o que vai ser destas populações no futuro? O que vai ser do futuro dessas pessoas, nessas condições, e em número crescente?

 

Os fenómenos de urbanização informal não dizem respeito unicamente aos países em vias de desenvolvimento. Contudo, e apesar das similitudes – a pobreza extrema, esteja ela onde estiver, é sempre estado de desequilíbrio social e, não raras vezes, de segregação territorial –, a escala (no sentido da dimensão e do número de aglomerados), o tempo (no sentido da velocidade a que proliferam e crescem) e as variáveis intervenientes num e noutro são distintas.

Nas regiões mais pobres do mundo a urbanização crescente não foi resultado de uma revolução industrial. Decorre acompanhada daquilo a que o sociólogo Bernard Granotier denominou de “terciário primitivo”4, afirmado no crescimento dos pequenos pontos de comércio e de prestações de serviços quotidianos que se espalham pelas cidades desses países, com taxas de natalidade elevadíssimas e índices de migrações populacionais jamais vistos no boom urbano das cidades dos países desenvolvidos. A urbanidade europeia, anterior ao século XIX, decorreu segundo processos mais lentos e progressivos, ao ritmo mais sereno da revolução industrial e do êxodo rural, comparativamente com os nossos tempos. Para passar de um estado de urbanização5 da ordem dos 8%, à taxa de 25%, a Europa levou quase um século (1820/30 a 1914) enquanto que nos países em vias de desenvolvimento o mesmo processo completou-se em quarenta e cinco anos (1930 a 1975) e segundo causas distintas.6

Os fenómenos da migração urbana que em tempos passados ocorreram nos países desenvolvidos são hoje desafios nos países em vias de desenvolvimento. A urbanização nestas regiões tem a característica de uma explosão. Outro agente preponderante neste desgovernado urbano é o facto destes fatores tenderem a gerar distintos processos de urbanização cujo crescimento e expansão ocorrem de formas múltiplas e simultâneas. As suas cidades consolidam-se na sobreposição contígua das fases de urbanização, de hiperurbanização, de suburbanização, de periferização, de desurbanização, de “explosão urbana a partir de fenómenos de implosão urbana”7, etc., e contrariamente às cidades europeias onde a expansão urbana foi dominantemente progressiva.

O mundo atual depara-se com esta irresolução que imerge ruturas locais e emerge tensões globais, numa equação que é a composição de diversos domínios e agentes. Constata-se que qualquer coisa demasiado díspar se mantém vigente no mundo em que vivemos. Na alçada destes desafios e exigências há uma medida de responsabilidade correspondente a cada um de nós. Urge reconhecer que fazemos parte do problema e da solução.

 

O modus vivendidas cidades dos países em vias de desenvolvimento expõe realidades díspares e coexistentes num mesmo tempo e espaço. O mundo formal é o mundo informal porque ambos são um só mundo gerado pela integração conjunta das características próprias de cada um deles. Este dualismo urbano estende-se do alojamento aos acessos, serviços, infraestruturas e vida social.

Os quadros de formalidade e de informalidade urbana são simbióticos porque nascem e crescem juntos num conjunto de influências recíprocas e integrantes da evolução urbana. Porém os contactos entre as duas realidades só se estabelecem se o segundo desafia o primeiro. As políticas urbanas dos países em vias de desenvolvimento defrontam-se então com a provocação à cidade formal dos desafios impostos pela cidade informal.8 A estas mudanças territoriais e demográficas correspondem transformações sociais e culturais inevitáveis, como por exemplo o desmantelamento das formas de distribuição de poder pelo corte nos vínculos tribais e nos graus de parentesco que constituíam a base das regências das comunidades tradicionais9 ou as fusões espaciais forçadas entre diferentes etnias com relações passadas nem sempre amigáveis.

As estruturas económicas, a par das facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias de informação e de comunicação, poderiam gerar atmosferas de benefício coletivo. Se incubadoras de sentimentos de respeito global e despertadoras de consciências coletivas e individuais simultâneas seriam, então, vias favoráveis às mudanças em prol de um mundo melhor. Porém este não tem sido o rumo tomado. E é nos países em vias de desenvolvimento que as mesmas assumem impactos devastadores dado o vertiginoso crescimento populacional, os paradigmas dos sistemas económicos vigentes e as elevadas taxas de ocupação urbana.

Todavia os fenómenos sociológicos não justificam tudo. O poder político, económico e as políticas urbanas têm um papel de intervenção extremamente importante sobre este fenómeno – todo um cenário urbano dotado de grande complexidade, contraste, necessidade e exigência.

 

Apesar das vontades despertadas as políticas urbanas ainda estão longe de conseguir desvitalizar o crescimento informal. Desde os modelos em que os assentamentos informais são removidos e os habitantes recolocados noutras áreas, até às intervenções de melhoramento nos próprios assentamentos, vários têm sido os programas formais aplicados ao problema.

 

Habitantes, técnicos, profissionais, promotores e diversos outros agentes têm proposto abordagens e estratégias visando a sua transformação. Todavia as políticas urbanas têm vindo a revelar dificuldades, verificando-se insuficientes ou até ineficazes diante das conjunturas inerentes à problemática.

 

Caracterizados por traços comuns dominantes ao longo das várias cidades dos países em vias de desenvolvimento quase que poderíamos reduzir os assentamentos informais a um só tipo de fenómeno. Porém não só representam tipos distintos entre si como implicam, dadas as especificidades, modos de ação e estudos particularizados. A variedade de terminologias, que o sociólogo Bernard Granotier expôs10,atesta a universalidade do fenómeno e a precisão de cada caso. Não existe a política urbana que é a fórmula para a solução e constata-se que cada terminologia é, no fundo, um estado tomado quer por quem lê o fenómeno, quer por quem o constroí e nele vive – estado de conformismo, estado de ativismo e dinamismo social, estado de vulnerabilidade.

No primeiro tipo os assentamentos correspondem a grupos associais que, excluídos pela própria sociedade, apresentam uma maior predisposição para a passividade, o conformismo e a rejeição. Esta condição sociológica resulta em aglomerados com espaços físicos descurados e rejeitados. No segundo tipo a informalidade surge associada a grupos de algum modo socialmente mais integrados. Este sentimento é propício ao dinamismo e ativismo individual e comunitário. Os espaços deste tipo apresentam sinais de potencial inovação e de busca de melhoria por iniciativa e conta próprias. No terceiro tipo enquadra-se a maioria dos assentamentos informais dos países em vias de desenvolvimento, nomeadamente do continente africano. Neste tipo, o prolongamento intemporal do não reconhecimento legal da ocupação dos solos, transfere estados de angústia, de vulnerabilidade e de desânimo aos grupos sociais neles instalados. Os habitantes temem a iminência de uma intervenção pública e sentem-se menos estimulados a um investimento local por iniciativa própria. O que distingue o segundo do terceiro tipo são as condições de enraizamento na cidade geradas a partir da atribuição de títulos de propriedade: a “situação de facto” acaba por tomar uma forma institucional que, com o tempo, passa a figura jurídica, o que parece digno de se sublinhar.

A sistematização apresentada não limita a multiplicidade e a diversidade do fenómeno informal aos três tipos assinalados – como Milton Santos refere “(…) favelas e taudis constituem uma realidade multiforme e mutável segundo cada país e cada cidade”11, o que afirma outras formas intermédias – porém pode auxiliar à formulação das premissas dos quadros de planeamento e de gestão das políticas urbanas. Esta consciencialização alarga campos de análise e de estudo, confirmando que a distintos tipos de informalidades devem corresponder estratégias particulares de política urbana.

 

As estratégias de intervenção do tipo Sites and Services funcionam como operações de prevenção e antecipação à formação de fenómenos de informalidade; os modelos do tipo Settlement Upgrading atuam segundo a atenuação e mitigação da informalidade instalada.

 

 

O que está na base destas abordagens é a importância do “Ordenamento”: tanto numa como noutra a grande intenção é propôr uma estrutura que permita a melhoria progressiva. “(…) diz-me a largura da tua rua, dir-te-ei quem és…”12. O ordenamento permite o acesso (e portanto facilita dinâmicas e trocas comerciais, surgimento de equipamentos e serviços, etc.), a segurança física (visibilidade, civismo), a segurança fundiária (propriedade, investimento), a representatividade (ter uma morada, uma referência, cidadania) e facilita os laços de comunidade e vizinhança. Ordenamento e organização social andam em paralelo, e devem ser pensadas em conjunto nas políticas urbanas (e rurais).

 

 

Subversivamente os planos para a construção e o desenvolvimento da formalidade podem converter-se em campos propícios ao ressurgimento da informalidade urbana. Tanto os programas dos Planos de Desenvolvimento como os programas dos Planos de Melhoramento podem resultar em circunstâncias propícias à reincidência da problemática da informalidade. Naturalmente que há um conjunto de fenómenos sociológicos, para lá do campo de ação das políticas urbanas, em parte justificador desse acontecimento. Contudo é de reconhecer que as causas relativas às formas e aos processos do planeamento e da execução também podem contribuir para tais consequências.

Quando certos propósitosnão ocorrem – ou ocorrem parcialmente, ou segundo métodos disfarçados – as concretizações formais das operações tendem a resultados de menor eficácia. Os parâmetros de adaptabilidade são tão débeis, ou desarticulados entre si, que acabam por não cumprir os objetivos inicialmente propostos. O formal passa a fecundador de novos campos de informalidade. É claro que nunca se está completamente imune de incorrer em enganos, tanto na fase de  diagnóstico e análise, como no momento da planificação da estratégia, ou na sua execução prática. Mas creio que os parâmetros de desfasamento podem ter graus de menor impacto. Por muito boas intenções e vontades técnicas que existam observam-se indicadores de rejeição e de recusa dos habitantes pelos espaços construídos, descontinuidades evolutivas, ou contenções económicas que são propícias ao ressurgimento dos fenómenos de crescimento informal. Que conclusões podemos tirar deste paradoxo?

A pretensão de resolução destes problemas deve, portanto, ser um objetivo prioritário no quadro das políticas urbanas atuais. Os programas têm que encontrar mais rumos que elevem os graus de operatividade e de adaptabilidade territorial, social, cultural, económica e urbana.

 

Parâmetros de Adaptabilidade

Inadaptibilidade justificativa, representativa e processual:

a) Não há modelos absolutos nem há modelos imperativamente errados

Há aplicações desadequadas

As tendências das políticas urbanas têm variado ao longo das décadas influenciadas pela própria história e pelas conjunturas nacionais e mundiais. Já a escolha do tipo de plano ou programa a aplicar depende mais diretamente de fatores locais, ou seja, os modelos não significam por si só uma via de aplicação operativa, eficaz e inclusiva. A solução, no contexto e pelo problema que a levanta, é mais ou menos desadequada à situação, mas não errada em absoluto. O modelo Sites and Services não é viável para uma operação numa favela do Rio de Janeiro – provavelmente tal tentativa resultaria numa estratégia de insucesso económico, urbano e social; o modelo Settlement Upgrading num terreno sem segurança física também resulta numa opção ineficaz. Os modelos em si têm valências positivas e próprias, os contextos características peculiares. Os resultados insuficientes podem depender mais de aplicações desadequadas do que dos pressupostos dos modelos em si mesmos.

 

b) A importação acrítica de modelos externos

A maioria das importações de programas e de planos originais de países desenvolvidos, porque acrítica, tende a incorrer nos mais variados problemas de inapropriação territorial e social em contextos de países em vias de desenvolvimento. Os próprios técnicos e os agentes envolvidos no processo convertem-nas em estratégias lucrativas, o que levanta vários problemas na execução das mesmas. Além disso esses modelos podem ser sentidos pelas populações como programas que jamais teriam aplicação nos países desenvolvidos, o que introduz um certo sentido de rejeição à partida no processo. Muitas das pessoas mais pobres destas regiões vivem o desejo de alcançar a concretização das imagens às quais se habituaram a associar significados de progresso e de modernidade estrangeira.

Por outro lado a aplicação destes modelos tende a resumir-se a uma espécie de tentativa de “ocidentalização” destas zonas- uma postura não só estrangeira mas inclusivamente local. Com facilidade se compreende, então, como os modelos aplicados segundo as conceções originais e as especificidades tecnico-políticas de outras culturas e de outros sistemas económicos são moldes desadequados às grandes questões das cidades destes países. Convertem-se em casos de indesejável fracasso técnico, social, económico e político, ainda que considerando as dificuldades das conjunturas locais.

 

c) A lentidão na obtenção do direito à propriedade – Acesso ao solo e Cadastro

A legalização dos lotes é fundamental para estimular os habitantes a reforçar a continuidade temporal do desenvolvimento territorial e a melhorar a qualidade do habitat dos próprios bairros. Deste modo estimulam-se vontades pela responsabilização, investimentos, manutenção e qualificação dos espaços, públicos e privados, ao ritmo das capacidades financeiras dessas populações. O acesso ao solo, ou seja, a obtenção do direito de posse sobre o terreno, corresponde a uma das ações essenciais ao sucesso destes processos. O cadastro é determinante nestas estratégias. A sua definição permitirá a produção de transformações urbanas estáveis, contribuirá decisivamente na fixação das malhas urbanas futuras, definirá usos individuais e coletivos, e facultará o acesso oficial ao solo pela normativa legal que também confirma. A importância do cadastro nestas operações justifica-se também pelas dinâmicas de segurança e de confiança que permitem que os proprietários vivam menores sensações de transitoriedade, o que facilita não só o investimento económico e de meios (alguma consolidação), como a criação de laços com a área de residência (identificação, relações de vizinhança e de comunidade, entre outros). O futuro proprietário poderá, então, depois, não só ir construindo a sua casa de modo concordante com uma implementação já estabelecida, como será mais provável que deseje tal investimento.13

 

d) Desarticulação entre os diversos agentes e intervenientes nos processos

Por vezes os setores público, privado e voluntário tendem a operar de forma isolada ao invés de incorporarem a luta por uma solução conjunta. Esta postura gera desarticulações e descontinuidades nas redes processuais ajudando ao fracasso das operações. Sabotando as iniciativas alheias, num contexto onde os recursos já são escassos, a sua otimização é crucial.

 

e) A inversão na hierarquia das subordinadas  – Alojamento versus Urbanização

Só após a resolução dos problemas estruturantes, ou seja, dos problemas de ordem urbana, é que estarão efetivamente proporcionadas as condições para a resolução dos problemas relativos aos campos arquitetónicos.

 

f) O impacto de certas variações processuais no decurso dos processos

Para expôr este parâmetro tomemos como exemplo a intervenção ocorrida no contexto angolano dos anos 70. O planeamento do Novo Bairro Golfe, do qual o arquiteto Troufa Real fez parte integrante, procurava uma solução para os principais problemas das musseques. A estratégia adotada para a intervenção previu a construção de um novo bairro integrado na malha urbana e  desenvolvido segundo sistemas evolutivos e comunidades participativas nos processos de execução (Plano de Desenvolvimento, Programas Ex situ). A iniciativa, com propósitos de Sites and Services, viveu no início de um grande entusiasmo político, social, técnico, económico e cultural. Todavia este processo iria sofrer, no decurso do mesmo, uma forte alteração dos objetivos inicialmente delineados e a própria interrupção dos métodos originais. A independência originou uma mudança radical de contexto e a natural rejeição de processos coloniais, de modo que o programa não conseguiu sobreviver de forma coerente com o período anterior. Estas causas externas conduziram a uma mudança processual cujos resultados obtidos acabariam por se revelar inoperativos e ineficazes do ponto de vista da qualificação urbana e social.14

 

g) A densa burocracia e a corrupção

O nível de burocracia da administração local e nacional é ainda interminável e por vezes incompreensível. As legislações, ainda que vigorantes, encontram-se recorrentemente desatualizadas. Muitas vezes são herdadas de anteriores períodos coloniais e a sua avaliação e revisão tarda em tomar lugar, o que é uma das causas da desatualização e inadequação normativa. Consequentemente as estratégias deparam-se com a exigência de uma abundância de relatórios e com a inadequação normativa às necessidades das realidades atuais.15 E os aspetos burocráticos, porque trabalhosos, tornam-se mais dispendiosos, logo menos acessíveis às classes economicamente mais desfavorecidas. Por outro lado, certas exigências  burocráticas parecem servir alguns casos de interesses particulares. A corrupção agudiza estas circunstâncias, beneficiada pela regulamentação inapropriada, os mercados disfuncionais e as ausência de vontade política.

 

h) A desarticulação entre a organização central e a descentralização

A ação do governo é fundamental para uma gestão eficaz do que depende das políticas públicas para um operativo desenvolvimento urbano. Há funções que só a administração central pode exercer, independentemente do programa operado. A gestão local, por sua vez, não deixa de ser necessária e de desempenhar papeis aos quais só a escala municipal pode corresponder com maior operatividade. O desejável, portanto, é que ambas as administrações sejam justapostas e estejam articuladas entre si. O sistema de hierarquização entre uma e outra dependerá das especificidades de cada situação. Se em determinado contexto a organização e a gestão centralizadas parecem oferecer maiores potenciais que as estruturas administrativas locais, então deve eleger-se a primazia da centralização, caso contrário deve prosseguir-se numa aposta de domínio da descentralização.

Um dos papeis fundamentais do governo é a criação de legislação adequada à regulamentação do direito à propriedade e/ou, consoante os contextos nacionais, facilitadora da transferência com reconhecimento legal dos títulos de acesso ao solo. Outro passará pelo ajuste o mais adequado possível dos suportes financeiros para certas fases da execução das estratégias. Porém as políticas de gestão e organização centralizada veem-se impossibilitadas de efetivar compromissos de proximidade com as especificidades de cada família e de cada utente, agravado pelo fosso cultural e social que pode existir entre os agentes e técnicos responsáveis pelas decisões e as pessoas a quem são destinadas. Este aspeto converte-se no descuro dos contextos. Se a gestão é somente centralizada, a exigência burocrática tende a aumentar e os modelos operados a estandardizarem-se, porque só assim é possível deter algum controlo sobre a ação. Apesar de poderem desejar a melhoria das condições de vida do maior número de pessoas, não conseguem atender às necessidades particulares de cada população e geram condições que efetivamente não partiram do diagnóstico das referências das situações, nem das prioridades das pessoas

Uma das teorias defendidas por John Turner focou precisamente estas questões. Segundo este autor o sistema centralizado, em detrimento da gestão local, beneficiava o acréscimo no nível de burocracia que imputava às estratégias.16 Apesar de partirem de programas de baixo custo estas políticas tornam-se avultadamente dispendiosas, inviabilizadoras de investimento nos recursos pessoais e inalcançáveis para os utentes. Uma família pobre é naturalmente segregada se a estratégia recorre a meios caros, depende de burocracias densas, implica o uso de tecnologias avançadas e o recurso a equipamentos pesados e raros. Por muito que se deseje torná-la parte ativa e participativa no processo esse papel muito dificilmente estará, de facto, ao seu alcance. Segundo o autor os sistemas centralizados e industrializados contrastam com os sistemas tradicionais tão comuns nos países em vias de desenvolvimento. Nestas zonas as operações são efetuadas por empreiteiros locais em respostas diretas às decisões dos promotores locais.

Turner sublinha que este facto estabelece por si só um distanciamento entre as estruturas administrativas centralizadas e os sistemas da autogovernação localizada, quando os últimos parecem permitir um maior grau de satisfação às populações. De facto as grandes organizações, sejam elas públicas ou privadas, têm sérias dificuldades em dominar os recursos pertencentes às realidades e às pessoas locais. As promoções públicas, alimentadas da dialética entre a procura e a oferta, tendem a reduzir a sobreposição justaposta das ações sobre as necessidades reais das populações beneficiárias. Por outro lado, a organização local estimula o uso dos recursos técnicos, humanos e materiais disponíveis, gerando graus de satisfação; fomenta ainda a responsabilização local e individual, desperta a autogestão e estabelece matrizes propícias a graus de investimento mais favoráveis ao desenvolvimento.

A resolução destas divergências depende de uma análise avaliativa dos recursos, do discernimento de usos e de utilizações, e das vontades políticas.

 

Inadaptabilidade económica:

a) Os investimentos e financiamentos económicos

Outra das causas reside nos baixos financiamentos iniciais e na falta de assistência aos sistemas financeiros. A falta de investimento gera mercados pouco atraentes e desencoraja apostas do setor público ou privado. A inexistência de meios de apoio às populações, que permitam impulsos sem absorver responsabilidades e autonomias, limitam a operatividade construtiva e deixam espaços abertos disponíveis aos sistemas económicos informais.

O conceito de assistência financeira para o auxílio ao melhoramento progressivo das casas não é uma ideia recente mas nunca foi impulsionada de modo a contribuir de forma significativa para a solução. Contudo são vários os autores que defendem a criação de sistemas de crédito que permitam à população usufruir de financiamentos.

O Branco Grameen17, o grande impulsionador do micro-crédito que visou o micro financiamento aos mais pobres, é um exemplo precursor, e de qualidade, da busca por soluções para a questão. O modo como conseguiu chegar aos seus membros e a forma como viabilizou as poupanças e os créditos destinados, por exemplo, à construção das habitações ou à aquisição de instalações sanitárias no programa “Grameen Bank Housing Program”, obteve resultados tão positivos que em 1989 foi-lhe atribuído o prémio Aga Khan para a Arquitetura. Foi um caso de sucesso por conseguir conciliar iniciativas de base económica, com organização comunitária, e em que a Arquitetura teve o papel de catalisador e de ferramenta de coordenação e melhoria das condições de vida.

 

Inadaptabilidade territorial e temporal:

a) A localização desadequada

Outro fator que é habitualmente preponderante nas escolhas para este tipo de estratégias de intervenção é a localização escolhida.

A opção por zonas LULU´s18 (Local Unwanted Land Uses – ou seja as zonas residuais cujos usos de solo são necessários ao organismo urbano mas nas quais ninguém quer viver perto) é desfavorável a um desenvolvimento futuro e desperta sintomas sociais de recusa populacional por essas mesmas zonas, como o fenómeno NIMBY (Not In My Back Yard). Algumas zonas das periferias urbanas, tais como os solos anteriormente utilizados para fins militares, por exemplo paióis, as áreas próximas de aeroportos ou as zonas periféricas às lixeiras municipais, por exemplo, serão terrenos rejeitados pelas próprias populações a que se destinam. Sentindo-se “despejadas” em zonas que mais ninguém deseja a população tende a recusar os espaços formais criados e a retomar padrões antigos de informalidade. Por sua vez a vigilância e o acompanhamento da evolução urbana nestas zonas tendem a ser mais descuradas o que igualmente favorece a liberdade de investimentos no crescimento informal.

A localização dos assentamentos em zonas periféricas distantes da cidade implica não só uma necessidade de investimento nos acessos e no serviço de transportes públicos (o que raramente acontece), como deixa as populações numa situação vulnerável. Quanto mais isoladas estas áreas maior a dificuldade em atrair investimentos, privados ou estatais (investimentos esses que certamente auxiliariam o desenvolvimento económico), e os processos de provisão de infraestruturas e de serviços públicos tornam-se mais lentos. Adicionalmente, os meios de subsistência destas populações, recorrentemente o comércio informal e a provisão de pequenos serviços, encontravam maiores oportunidades em zonas movimentadas como a proximidade a pólos urbanos dinamizadores, e a deslocação para periferias tendencialmente monofuncionais limita e inviabiliza estes meios de subsistência.

 

b) A inapropriada gestão temporal entre o momento do planeamento e a fase da execução – Um problema geral dos planos e destes em particular

A abordagem metodológica mais comum baseia-se na identificação inicial dos problemas com a definição de uma proposta de planeamento para a resolução dos mesmos. Porém não raras vezes as intenções não passam à prática, permanecendo incompletas no âmbito das ideias mais ou menos teorizadas. Na altura em que a execução do programa é efetivada as causas analisadas já mudaram e as propostas formuladas já estão desajustadas com a realidade social e territorial vigente.

O problema original alterou-se, as necessidades transformaram-se, por vezes até a própria comunidade é constituída por outros indivíduos. Esta situação prende-se com o facto das questões não saírem dos planos estabelecidos ou limitarem-se a cumprir pequenas partes do mesmo. Esta descoordenação pode exigir a repetição do processo para uma reavaliação da estratégia inicialmente traçada, o que acarreta um acréscimo de custos então desviados da aplicação sobre outras necessidades. Ou, a ser praticado o plano original, certamente ocorrerão resultados inoperativos e pouco eficazes.

Por outro lado certas preocupações iniciais podem levar a uma secundarização da importância do planeamento urbano, o que incorre em planos mal concebidos e negligenciados e inviáveis ao desenvolvimento urbano. As questões imediatas relativas à administração, à gestão ou aos suportes económicos, por exemplo, podem absorver a atenção técnica e política, desviando a perspetiva no processo. O que inicialmente era um produto realista fica cativo dessas questões e dos respetivos procedimentos burocráticos. Nestes casos, se já implantados e instalados, pode até dar-se a impossibilidade de operar qualquer tentativa de alteração e melhoria futura.19

 

c) Acompanhamento, vigilância, manutenção, conservação

Uma das maiores causas é a falta de entidades internas e externas (instituições, corpos associativos, cooperativas, organizações comunitárias, etc.) capazes de dar continuidade aos propósitos de desenvolvimento e de formalidade originais às intervenções. Os modelos de ajuda internacional não são os melhores porque prestam assistência técnica de urgência, em vez de fornecerem tecnologias realmente ajustadas à promoção do desenvolvimento local. As organizações externas, como algumas organizações não governamentais, por exemplo, tendem a desaparecer nas fases seguintes ao período inicial, sem redes comunitárias locais estimuladas e autónomas. Por norma funcionam como atores externos que entram e saem de saem de cena, numa composição de descontinuidade temporal. As organizações internas, tais como associações e cooperativas, por sua vez e por norma, são escassas ou existem em número demasiado reduzido para a escala física e demográfica deste tipo de assentamentos. Nestes casos, e independentemente do número em que ocorrem, a questão reside ainda na abordagem e no papel: elas não podem substituir nem o Estado nem as comunidades, por isso não podem “oferecer” soluções prontas, mas antes tecer redes e favorecer a gestão comunitária – um papel com resultados menos visíveis e períodos de implementação mais longos, embora provavelmente o de resultados mais duradouros. Quando existentes só têm a beneficiar com uma abordagem de “foco em processos, não em produtos” que os intervenientes externos podem disponibilizar através da prestação de algum acompanhamento. O acompanhamento e a vigilância promovem a continuidade dos aspetos da urbanização saudável a longo prazo e estimulam o incentivo à criação local.

 

Inadaptabilidade social:

a) O controle dos habitantes nas decisões dos processos

Falar de autoconstrução e de participação comunitária deve supor que se fala também de autogestão, de autoajuda, de autodecisão. Esta postura parece ser crucial. “(…) a segunda lei de Turner diz que a coisa mais importante acerca da

 

19GOELHERT, Reinhard – La microplanificación : un processo de programación y desarrollo con base en la comunidad. Washington: Banco Mundial, 1992, pg. 29 Congresso do CIALP, Texto policopiado, Luanda, outubro, 1997, pp. 136-137.

habitação não é o que ela “é” mas o que ela “faz” na vida das pessoas, por outras palavras, que a realização do habitante não está necessáriamente relacionada com a imposição de estandars. A terceira lei de Turner diz que as deficiências e imperfeições na “sua” casa são infinitamente mais toleráveis se forem da sua responsabilidade do que da de ‘qualquer outra pessoa’. Mas além das verdades psicológicas da segunda e da terceira leis, estão as verdades sócio-económicas da primeira lei de Turner, do seu livro ‘Freedom to Build’. Quando os habitantes controlam as decisões de maior importância e são livres para dar o seu próprio contributo no design, na construção e na gestão das suas casas, o processo e o ambiente produzido estimulam o bem estar social e individual. Quando as pessoas não têm controlo nem a responsabilidade nas decisões chave do processo habitacional, os ambientes habitacionais podem, pelo contrário, tornar-se numa barreira para a realização pessoal e um pesado fardo naeconomia.”20

 

Equívocos:

– Quando a autoconstrução não basta

Pode-se cair no equívoco de assumir a autoconstrução, positivamente referida, como uma opção romântica que relativiza as condições verdadeiramente duras em que vivem as pessoas. Como John Turner, defensor acesso da viabilidade do processo autoconstrutivo, não deixou de alertar que não se pode fomentar como modelo uma prática que será efetuada por pessoas subnutridas e fisicamente esgotadas pela sobrecarga de trabalho. Na opinião do autor o que deve ser defendido é a liberdade para construir e não o dever de construir pela impossibilidade de escolha.

 

– Quando a participação não chega

Os conceitos de autoajuda e de autoconstrução são coordenadas da autossolução. Mas a participação comunitária, ou seja, a autoajuda – que, note-se, difere de autoconstrução no sentido em que uma não implica necessariamente a outra21 – por si só não é garantia absoluta de controlo e de decisão. Por outras palavras, a autossolução não requer a autogestão. Mas o que dizer da ausência de autogestão? “(…) de quem é a participação? De quem são as decisões? E de quem são as ações?”22

John Turner indica três níveis possíveis de participação em função do espaço atribuído ao grau de controlo na tomada das decisões e à execução das ações:

1) os promotores que decidem e os utentes que executam, 2) os utentes que decidem e os utentes que executam, 3) os utentes que decidem e os promotores que fornecem. A primeira e a terceira leis deste autor merecem ser novamente referidas. Se a população não tem controlo e responsabilidade nas decisões essenciais à fundação das bases do processo os habitats podem tornar-se bloqueadores da aspiração à realização e à satisfação familiar (além da sobrecarga económica); as deficiências do espaço doméstico tornam-se insuficiências toleráveis pelos próprios habitantes quanto mais forem um resultando da sua ação (ou seja, da sua própria responsabilidade) e menos uma decisão tomada por terceiros. Estas duas linhas mestras do pensamento do autor referido apontam para a reposição do controlo dos processos de decisão para a posse dos futuros beneficiários dos espaços. Caso contrário as relações de identidade e sentimento de pertença tendem a ser travados, inibindo o desenvolvimento económico-social e territorial. Para Turner o fator da execução – quem faz e quem executa a ação? – é secundário. A participação efetivamente autêntica reside na gestão (na autogestão) do processo, ou seja, no reconhecimento e na atribuição do poder decisivo aos habitantes. A eficácia das estruturas administrativas utilizadas e a presença de sistemas de autogestão aumentarão o desejo pela participação ativa.

Este poder pode, porém, ser crítico. Se o nível de controlo local for diminuto, ou inexistente, e os recursos pessoais imobilizados, surgirão fenómenos de fracasso social, económico e cultural, com manifestações de rejeição e até de vandalismo. Também o estabelecimento de estruturas que garantem a segurança legal e os mecanismos económicos mínimos para a continuação do esforço nos investimentos locais interferem na questão e não bastam por si só. As pessoas precisam de estruturas organizativas sociais que apoiem redes sociais dinamizadas e dinamizadoras. Constituem suporte à iniciativa e estímulo participativos, e também eles promotores da manutenção da ordem das estruturas físicas.

 

b) Signos sociais

A adaptabilidade comunitária não depende de novos elementos técnicos mas do papel do utente, como a chamada de atenção de John Turner para os três níveis de participação atrás enunciados faz apontar. As preocupações, as vontades, os desejos dos habitantes – parte dos signos sociais – não podem ser ignorados ou remetidos para considerações secundárias. Além disso estas populações apresentam condições económicas favoráveis a metamorfoses inesperadas que requerem consideração. A imprevisibilidade é uma característica presente: os rendimentos variam de família para família, o rendimento familiar varia de tempo para tempo, as previsões pessoais de futuro variam consoante as circunstâncias e os índices demográficos são incontroláveis. As prioridades tidas em linha de conta pelas decisões técnicas, e segundo os desejáveis processos de autogestão, requerem graus de flexibilidade que possam permitir uma justaposição adequada às necessidades e às imprevisibilidades sentidas e vividas por estas pessoas.

Relembrando o pensamento do sociólogo Bernard Granotier, sublinho que a desarticulação entre estas especificidades e o tipo de estratégias que se aplicam contribuem para os efeitos de crescimento ou de desenvolvimento sócio-territorial.

 

Considerações Finais

As políticas atuais tendem à reavaliação das possibilidades metodológicas do planeamento e da gestão urbana de modo a alcançarem direções de maior operatividade diante das complexidades e das dificuldades destes processos. O equilíbrio apropriado entre os vários parâmetros de adaptabilidades referidos parece constituir parte da solução para uma estratégia de desenvolvimento territorial baseada na evolução humana coletiva.

 

Princípio da Adequação às ferramentas práticas da realidade

Flexibilidade, Elasticidade – Determinação , Orientação

O conhecimento técnico e teórico do planeamento tem que ajustar-se às ferramentas práticas das realidades, integrando-as na qualificação adveniente do conhecimento. Todavia este é um equilíbrio extremamente difícil. O poder da definição a que o planeamento naturalmente incentiva tende a ser demasiado presente, o que implica uma atenção redobrada e ponderada, e particularmente exigível no tipo de processos metodológicos abordados. O planeamento, e o planeamento em particular no tipo de políticas urbanas abordadas nos países em vias de desenvolvimento, requer ser entendido enquanto uma ferramenta processual e utilitária, indicativa das diretrizes estratégicas e das ações a implementar. Não visa projetos e planos terminados, e determinados, mas um conjunto de indicadores e variáveis que funcionarão como uma matriz de coordenadas conceptuais propícias a materialização física das operações sobre as realidades vigentes. Importa o processo mais que o plano em sí, importam os meios mais que os projetos em sí mesmos. O planeamento compreende-se, então, como uma ação estratégica de desenvolvimento e como um projeto permanentemente inacabado. Esta estratégia assume a ideia de totalidade em detrimento da particularidade e obriga o exercício a libertar-se do campo ideológico.

 

Para uma adaptabilidade técnica e temporal aos diversos contextos e recursos

A criatividade parece tratar-se de uma determinante imprescindível à boa gestão e justa articulação entre estas quatro variáveis, aparentemente antagónicas entre sí – flexibilidade, elasticidade, definição e orientação.

 

Saber trabalhar com o que se tem

As abordagens progressivas e graduais são, portanto, posturas metodológicas e técnicas determinantes e estruturantes destas políticas urbanas. Uma execução faseada, ativa e operacional, e um planeamento gradual, evolutivo e parcial, são não só deliberadamente aplicados nas estratégias evolutivas das infraestruturas, como também ocorrem nos processos de construção das próprias edificações. Aliás, é de reforçar a ideia de que estes desenvolvimentos – a evolução das infraestruturas e a evolução das habitações – ocorrem paralelamente e em interligação complanar. Esta é uma estratégia que permite pontos de encontro com a realidade dos recursos efetivamente existentes. Quanto mais escassos os recursos locais disponíveis e maiores os condicionalismos das conjunturas em curso, mais evolutivas tendem a ser as intervenções. No limite e ao nível das infraestruturas, a primeira necessidade a ser satisfeita será sempre a do abastecimento de água, seguida da provisão de sistemas de saneamento, depois da melhoria das vias, acessos e arruamentos e, só no final, concentrada na promoção e desenvolvimento de equipamentos.

 

Para um certo grau de definição e orientação independentemente dos contextos

O princípio do diagnóstico permite examinar referências das situações e prioridades das pessoas. Para isso numa primeira etapa identificam-se premissas e hierarquizam-se desígnios (sempre a partir da população utente); numa segunda fase compreendem-se sistemas de compensação; numa terceira fase formulam-se dados para a montagem de uma árvore de problemas. Somente examinando o contexto em sí é possível formular políticas adequadas. Em algumas áreas as comunidades requerem planos de ordenamento e de urbanização – modelo ex situ – Sites and Services; noutras operações precisam de alojamento in situ – Settlement Upgrading.

Contudo um certo grau de orientação é exigível aos direcionamentos técnicos de modo a, paralelamente, poderem contribuir para a minimização/ redução das debilidades nos resultados e a estruturação/ estabilidade nas ações.

A dimensão da necessidade e da procura, a par da contenção financeira e da escassez técnica sentida nos países em vias de desenvolvimento, apelam a estratégias de aplicável expansão, ainda que sem perda da adaptabilidade acima referida. Esta grandeza converte limites para lá de certo grau de indefinição. Os processos mais comparativos e acumulativos que diferenciadores e parcelares são simultaneamente mais aplicáveis sobre quaisquer circunstâncias específicas.

A determinação do cadastro permite o funcionamento de suportes estáveis aos processos de transformação urbana. A existência de uma normativa jurídica, técnica e oficial, permite, à luz da abrangência dos quadros legais, defender os interesses do utilizador, assegurar os deveres do mesmo e gerar suportes favoráveis à estabilidade das transformações urbanas. Por outro lado a capacidade de transferência é paralela à importância da posse já que nestes tipos de grupos sociais as populações podem ser sedentárias.

Contudo a ausência desta figura enquanto instrumento jurídico nem sempre é um problema. O cadastro cívico, aliás, pode assumir uma condição superior sobre o cadastro jurídico no quadro deste tipo de estratégias. Os habitantes podem sentir-se – até considerarem-se – proprietários de espaços sobre os quais não detêm qualquer direito legal, e, por isso, investem e cuidam das suas “propriedades”.

A regulamentação é uma variável que parece ser efetivamente importante nos contextos onde a sobrevivência já está assegurada, o que não o é o âmbito dos casos abordados neste estudo. Neste tipo de processos, e ainda que se lhe reconheça importância, é tomada como uma variável secundária.

A divisão e a distribuição de niveis de ação e de autoridade sugerem que os organismos locais sejam mais autónomos, ainda que apoiados nos serviços municipais básicos e ambos na base das autoridades regionais e/ou nacionais.

A gestão local, que deve ser articulada com a gestão centralizada, pode minimizar problemáticas processuais porque confere, dada a natureza da sua escala, maior flexibilidade e adaptabilidade às politicas urbanas, quer nos momentos iniciais, quer a longo prazo.

A gestão com alto teor burocrático agrava o insucesso dos programas. Nas metodologias simplificadas, com suporte jurídico e apoio oficial, sem sistemas burocráticos morosos e relatórios extensos, favorecem a estratégia porque menos dispendiosos e temporalmente mais ajustados.

Para uma adaptabilidade ajustada e ajustável, a flexibilidade técnica, programática, metódica e processual é necessária ao equilíbrio apropriado entre técnicos, profissionais, estratégias, locais e pessoas-beneficiários. O princípio da atribuição de responsabilidades, direitos e deveres, e de papéis claros, facilita na montagem de sistemas multidisciplinares articulados, preferencialmente mais operativos e eficazes. Quem faz o quê? Quando? E como? A garantia de êxito para as populações pode passar pela redistribuição de papéis e funções. Ao arquiteto um papel efetivo de orientação. Aos utentes um papel de controle. A articulação disciplinar é uma necessidade das políticas urbanas destes contextos, que deve ser entendida como macro e hipersistema. Por exemplo: pouco sucesso será atingido se os sistemas de recolha de lixos previstos não se fizerem acompanhar de programas de educação higiénica.

A participação integrada, e com poder de decisão, é essencial pois permite um sentido de apropriação cívica do espaço, o que leva cada indivíduo a sentir-se naturalmente, a aprazivelmente, responsável por cuidar do que sente que faz e que é seu.

A criação de entidades organizativas e associativas é uma das premissas a manter como uma resposta crucial à obtenção de resultados de desenvolvimento social e territorial efetivo. Para que sejam efetivamente viáveis implicam capacidade de liderança e de gestão. Mobilizam as relações comunitárias, dignificando e reabilitando os seus modus vivendie promovem vias para o desenvolvimento territorial ao integrá-las na responsabilização pelo seu modus operandi.

As soluções mais efetivas e operativas estão nas próprias cidades e nas próprias populações beneficiárias. Saber ser arquiteto nos países em vias de desenvolvimento é, do mesmo modo, saber ser arquiteto em qualquer outro lugar do mundo. Há que confecionar posições de afeto, generosidade, respeito, reconhecimento e empatia, a par da consciência profissional e da responsabilidade técnica pela busca da solução. Esta é uma política do “fazer fazendo”, do “desenvolver desenvolvendo” , do “construir contruindo”.

 

1TICKELL, Sir Crispin, citado por ROGERS, Richard – Cidades para um pequeno planeta. Barcelona: Gustavo Gili, SA, 2001, pg. 22.

2SERALGELDIN, Ismail – The Architecture of Empowerment. London: Academy Edition, 1997, pp.11-12.

3SERALGELDIN, Ismail, ob. cit., pg. 15.

4 GRANOTIER, Bernard – La Planète des bidonvilles. Paris: Seuil, 1908, pg. 83.

5 Estado de urbanização: entendido como a proporção da população que habita em aglomerados com número igual, ou superior, a 20 000 habitantes, in BAIROCH, Paul – Storie delle Città. Dalla proto-urbanizzazione allésplosione urbana del terzo mondo. Milano: Jaca Book, 1992, pg. 52.

6 BAIROCH, Paul, ob. cit., pg. 27.

7 AMARAL, Ilídio do – A propósito das Cidades do Terceiro Mundo: contribuições geográficas. Lisboa: Garia de Orta – Série de Geografia, 1988, pg. 21

8 As populações não são informais, os contextos físicos e a matéria é que podem sê-lo. Esses habitantes são o grupo de pessoas que habita na informalidade.

9 RIBEIRO, Carla – Requalificação Ambiental e desenvolvimento sustentável das grandes cidades nos países emergentes: o caso de Luanda, Tese de Doutoramento. Roma: 2000, pg. 19.

10Em francês a terminologia recorrente é taudis, por anglicismo squatters, e designa ocupantes ilegais; em inglês utilizam-se termos como slum, shanty towns, substandard settlement e squatters settlement, que significam assentamentos de ocupação clandestina; já o alemão é mais redutor referindo-os de armenviertel (bairros pobres) e o espanhol mais positivo com o uso de colonias proletarias(México), barriadas de pueblos jovenes(Peru), subúrbios(Equador), ranchitos(Venezuela). Sobre este assunto ver GRANOTIER, Bernard, ob. cit., pg. 89

11SANTOS, Milto – L’espace paragé. Paris: Librairies Techniques, 1975, pg. 31.

12PORTAS, Nuno – Conceitos de Desenvolvimento Urbano. Jornal Arquitetos: abril/maio 1987, pg. 9.

13 Tome-se como exemplo a estratégia de intervenção para uma expansão de desenvolvimento territorial e social ocorrrida em Hyderabad, no Paquistão, destinada a um grupo de pessoas sem alojamento e em situação de extrema pobreza, num contexto onde o poder de acesso à terra estava nas mãos das classes médias. O acesso à terra era uma premissa crucial. Após o estudo resultante de um modelo participativo de avaliação que permitiu identificar as famílias efetivamente pobres, foi-lhes imediatamente fornecido o acesso à propriedade. Os habitantes adquiriram um sentido de dignidade e de reconhecimento que seria convertido na construção de espaços cuidados, qualificáveis e estimados. Sobre este assunto ver http://web.mit.edu/urbanupgrading/upgrading/case-examples/ce-IO-jak.html

14TROUFA, Real – Musseques de Luanda, Angola – O Novo Bairro Golfe, Um Plano, uma alternativa, um grito de liberdade na conquista da identidade nacional. Laranjeiro: Universidade Moderna, 1997, pp. 36-37

15 No Egito a legislação em vigor relativa à urbanização e à construção ainda data de 1972 e remete para normas que na altura foram concebidas devido à restrição industrial que o setor da construção vivia em contexto de crise política e financeira. Sobre este assunto ver DITTMANN, Elmar, Simple Forms of Building in the Third World, Detail, April/May 2001, pp. 368-369

16 TURNER, John F. C. – Housing by People – Towards Autonomy in Building Environments. New York: Pantheon Books, 1977, pp. 162 – 163pp. 162 – 163.

17 O Banco Grameen, ou o Banco da Aldeia, foi fundado em 1983 pelo economista Muhammad Yunus. Tornou-se a primeira instituição a praticar o microcrédito. Sobre este assunto ver YUNUS, Muhammad – O Banqueiro dos Pobres. Algés: Difel, 4ª edição, 2007.

18 O termo LULU´s foi inventado por Frank J. Popper e ultilizado pela primeira vez no seu artigo “Siting LULU´s”, publicado em 1981 na Planning Magazine. Sobre este assunto ver http://policy.rutgers.edu/faculty/popper.html

20TURNER, John F. C., ob. cit., pg. 127.

21 A visão de John Turner assinala esta constatação ao clarificar que a autoajuda não significa exatamente autoconstrução e que o ponto central da participação está no controlo ou no poder de decisão.

22 TURNER, John F. C., ob. cit., pg. 139.

 

Legenda de imagens

Manshiyat naser, Cairo, Egipto, in: http://www.flickr.com/photos/helmacron/4221369161/

Favelas em São Paulo, São Paulo, Brasil, in: http://www.favelization.com

Favelas em São Paulo, São Paulo, Brasil, in: http://www.favelization.com

Assentamento informal de Dharavi, Bombaim, India, in: http://www.favelization.com

e Esquema de políticas urbanas de intervenção

Planos de Marginalização: Programas de Supressão e Repressão: agem com medidas repreensivas que visam a eliminação dos assentamentos através da demolição e recolocação dos habitantes noutras áreas urbanas.

Planos de Desenvolvimento: Programas Ex Situ (de expansão): operam através de estratégias de criação, construção e formação de novos assentamentos formais segundo uma postura de integração, valorização e reconhecimento urbano das zonas informais.

Planos de Melhoramento: Programas In Situ (de dissecação): actuam sobre os espaços informais solidamente consolidados e instalados segundo uma postura de integração, valorização e reconhecimento urbano das zonas informais.

f Diagrama de parâmetros de adaptabilidade

g ModeloSites and Services projecto Banco Mundial, Gorai, Mumbai, Índia, In: http://urbz.net/files/2010/01/GORAIsiteandservice.jpg

h Aranya Low-Cost Project, Indore, Índia, in: http://archnet.org/library/sites/one-site.jsp?site_id=1124

i Aranya Low-Cost Project, Indore, Índia, in: http://archnet.org/library/sites/one-site.jsp?site_id=1124

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l East Wahdat Upgrading Program, Amman, Jordânia, in: http://archnet.org/library/images/

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