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Luísa Saldanha

luisasaldanha.arq@gmail.com
Arquiteta, mestre em Reabilitação da Arquitetura e Núcleos Urbanos, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa

 

Para citação: SALDANHA, Luísa – Estado crítico, contextos na produção urbana e reabilitação integrada. Estudo Prévio 1. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2012, p. 81-91. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net].

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Resumo

As ações que definem a intervenção urbana das cidades para reposicionar a sua centralidade não podem passar apenas pela reabilitação e revitalização dos centros históricos, pela promoção das zonas urbanas tradicionais ou pelo desfrute de excecionais situações de frentes de água, urbanísticas ou paisagísticas. Mas antes exigem políticas de integração e linhas de orientação estratégica equitativas e integradas, para que se articulem com os espaços heterogéneos e fragmentados conferindo-lhes identidade urbana.
A qualidade do habitar do espaço urbano interessa ser considerada tanto em micro escala como na escala urbana. Uma qualidade de vida que promova equidade, identidade, a boa vizinhança e se traduza na consciência do bem coletivo, decorre da adequação do espaço do habitar e do espaço urbano.

Palavras-chave:políticas urbanas, reabilitação integrada, exclusão social, cidadania

 

 

 

Estado crítico, contextos na produção urbana e reabilitação integrada

“Uma cidade é um sistema no qual a vida se polariza, desenvolvendo-se em termos de agregado social, público ou privado, em estreita relação. Quanto mais forte é este intercâmbio, mais “urbana” é, sob o ponto de vista sociológico, a vida de um agregado e mais forte o caráter de cidade” (ROSSI, 2001: 27)

 

1. Introdução

A exclusão marginal de origem social, étnica ou económica e a violência na periferia e em geral nas grandes cidades europeias, são situações que acontecem na cidade ou são questões que a própria cidade gera? Como se articulam as dimensões social, política e territorial destes conflitos? Os bairros, as áreas urbanas, de arquitetura pobre e de pobre urbanismo, com pouca qualidade de cidadania, periféricos, sem boa comunicação, com pouco equipamento, nas margens da cidade tradicional, são progressivamente abandonados pelas pessoas que melhoram a sua posição. Os que aí então se instalam são precisamente aqueles que não acederam ao desenvolvimento[1], as que permanecem na escala social mais baixa.

O que era no início um processo social transformou-se num fenómeno urbano, em círculo vicioso de marginalização social e desclassificação de tecidos urbanos. As pessoas que ficam no fim da escala social são em grande parte imigrantes, internos ou estrangeiros, ou pertencendo a grupos sociais em transição, como ciganos e trabalhadores migrantes. Na prática funciona uma discriminação de facto, não jurídica, sobre as pessoas e sobre os seus descendentes.

 

2. A cidade contemporânea e o seu governo

«Only yesterday, metropolitan areas maintained an opposition between “intramural” population and a population outside of city walls; today, the distinctive oppositions between the city’s residents occur only in time: first, long historical spans witch are identified less with the notion of a “downtown” as a whole than with a specific monuments; and second, technological time spans which have no relation to a calendar of activities, nor a collective memory except to that of the computer”. Contributing to the creation of a permanent present whose intense pace knows no tomorrow, the later type of time span is destroying the rhythms of a society which has become more and more debased.» (VIRILIO, 1996)


As funções historicamente reconhecidas ao estado moderno no planeamento e gestão das cidades com objetivos de promoção da coesão social necessitam de encontrar novas formas de providenciar operatividade, sobre programas de conjugação de recursos públicos, privados e outras modalidades colaborativas de gestão de serviços. O papel de estado que provém e redistribui recursos de uma forma providencial, centralizada, impositiva e definidora de modelos, abre-se hoje a novos conceitos de governo, que incluam os agentes económicos e sociais implicados (PORTAS; DOMINGUES; CABRAL, 2007).

A governabilidade é hoje confrontada “com grupos sociais diversificados, territórios socialmente heterogéneos, associações efémeras, enfraquecimento dos mediadores locais, sujeita a lógicas técnico-económicas privadas” como refere François Ascher (2004: 259). Está sujeita à incerteza, perante a ineficácia e o resultado das políticas passadas e confrontada com os novos desenvolvimentos entretanto ocorridos na sociedade, na economia, no território: necessita de novos procedimentos consultivos e deliberativos, capazes de associar uma participação efetiva de representantes da sociedade civil, na elaboração de um pensamento estratégico e execução de políticas e decisões públicas, em efetivo exercício de democracia participativa e transparente nos processos, nas suas aferições e no seu controle.

A intervenção do estado na regulação do urbano está agora associada à emergência de ameaças sociais amplificadas (desemprego, exclusão social, deslocalização da produção e do trabalho, comunidades desestruturadas e migrantes, criminalidade emergente, fenómenos grupais de violência urbana, criminalidade difusa); à economia liberal e globalizante do mercado; à cidade com os novos padrões de procura (cultural, residencial, mobilidade, migrações, conforto, ambiente); à cidade das redes, dos fluxos. À cidade mutante dando lugar às novas configurações espaciais-territoriais habitadas[2].

A cidade tradicional–histórica ocupa agora uma fração cada vez mais pequena de território urbano em relação ao território a que deu origem: a metrópole, cidade de fluxos, multipolar e multicêntrica, passa a ser cidade em rede, insere-se em sistemas urbanos macrorregionais, em conurbação difusa, disseminada, intersticial e dispersa, ampliada nestas qualidades pelos movimentos pendulares dos seus habitantes motorizados, que aí vão trabalhar, acedem aos serviços e ao lazer. “A Cidade Genérica representa a morte definitiva do planeamento. Porquê?”, pergunta Koolhaas (2006: 46). «Não por falta de energia e de dinheiro, não por não estar planeada, mas porque ele não introduz diferenciação nenhuma, porque gera espaços indistintos, aborrecidos e perecíveis, funcionam e é tudo. A Cidade Genérica alberga, acolhe o Espaço Lixo, o espaço residual, sobre o qual se atropelam obscuras engenharias oportunistas, de produção especular, espaço autoritário, porque se impõe arbitrariamente, substituindo a vida pública pelo “espaço público”.» (KOOLHAAS, 2007)

A evolução da tecnologia dos transportes contribuiu para a realização da utopia da cidade-jardim criando, pela sua repetição, a morfologia urbana conhecida como subúrbio ou sprawl. A possibilidade de a cidade se estender por uma área infinita, resulta em parte de razões económicas e variação especulativa do valor dos terrenos, como das expectativas individuais baseadas na habitação mono-familiar, mas menos como expressão de uma vontade de planeamento urbano ou um modelo de cidade. Thomas Sievert refere-se a esses tecidos como Zwischenstadt, cities without cities (SIEVERTS, 2003).

A nova perceção de urbanidade forma-se não mais pela definição dos limites identificáveis da cidade histórica, mas pela descontinuidade difusa entre o rural e o urbano, entre um centro (cujos contornos não se definem fisicamente) e outro.

A natureza da cidade, a expressão urbana física que adquirem os aglomerados populacionais na atualidade, configura-se na velocidade das transformações e na dificuldade da sua perceção e da sua análise: metapolis (ASCHER), cidade genérica (KOOLHAAS), cidade global (S.Sassen), entre–cidade (SIEVERTS), cidade em rede (DEMATTEIS), cidade de bites (MITCHELL), cidade difusa (INDOVINA), etc. Todas estas leituras, procuram entender a realidade urbana contemporânea: demonstram e revelam a sua autonomia em relação aos instrumentos estratégicos, de planeamento, de regulação e de projeto que se queiram exercer sobre ela e sobre a paisagem que configura.

A cidade é assim uma relação complexa e em constante definição. As suas formas físicas – o lugar de implantação, o traçado das vias, a característica das suas construções, a sua dimensão e significado, a sua extensão, a sua geografia, o seu meio natural, coexistem em relações de forças globais[3] e locais, que a atravessam, que a alteram, que marcam o espaço urbano e os seus sinais.

“Que é feito das noções de distância, de continuidade, de densidade, de diversidade de miscigenação, ao mesmo tempo que a velocidade de deslocação de bens, de informação e de pessoas se acresce de maneira considerável? Que é feito dos equipamentos coletivos e dos serviços urbanos numa sociedade de práticas e necessidades cada vez mais variadas e individualizadas? Como decidir e agir para o bem de uma coletividade numa sociedade mutável e diversificada? Como pensar e fazer cidades performativas, atraentes e equitáveis, no contexto da sociedade hipertexto e do capitalismo cognitivo?” pergunta Ascher (2004: 80).[4]

 

3. Coesão social e económica. Coesão espacial. Coesão cívica

“Casas dispersas como ovelhas perdidas e casas aconchegadas umas às outras. Correm em bicos de pés espreitando e voando sobre os vizinhos. Casas subterrâneas miseráveis, nas colinas, pintadas de azul e lilás.” Álvaro Siza, Porto, 1 de março de 2006 (trecho do texto para exposição “desenhos de construção com casa e céu”, Carlos Nogueira, Casa da Cerca, Almada, 2006).

A produção do espaço urbano clandestino, que é necessário reabilitar de uma forma integrada, está ligada a uma condição de cidadania inferior[5]. De 1960 a 1980, mais de 60% dos edifícios novos, na região de Lisboa, foram construídos sem licença de construção. O aumento da imigração para a cidade, a falta de alojamento disponível, a oferta de terrenos subdivididos e loteados com a promessa do direito a construção feita por negociadores oportunistas, sob o olhar tolerante dos poderes públicos, desencadeou a colonização de novos territórios, dentro e nos limites das grandes cidades[6]. Só depois de 1989, com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, os poderes municipais começam a introduzir infraestruturas básicas nesses tecidos urbanos, reconhecendo a necessidade de iniciar o processo da sua legalização e qualificação urbanas[7].

Quando as gerações se sucedem em imobilismo social depressivo, ou quando os que acabam de chegar estão empobrecidos e procuram o lugar de recurso, a consciência de não haver saída para quebrar o ciclo de pobreza aumenta o grau de violência e a desintegração grupal. Não é apenas a dificuldade de emprego, de habitação ou de assistência, mas a falta de saída para a situação dura, sem vislumbre de ascensão e reconhecimento social, o que caracteriza os bairros ditos “marginais”. O aspeto social, ligado à discriminação, ao desemprego e à falta de perspetiva de mudança, está muitas vezes associado à qualidade urbana desses sítios: em localização periférica, em que o espaço público é pobre e com falta de equipamento e onde persiste a fraca qualidade aos edifícios.

Este fenómeno é diferente do que ocorria a partir dos meados do século passado e estende-se agora à própria classe média, média-baixa e mesmo alta, pelas diferenças entretanto ocorridas: precariedade de trabalho, apesar do incremento de educação e formação, diferentes níveis de acesso e relação aos bens e ao consumo, novos paradigmas urbanos, civilizacionais e económicos.

“Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro e encontravam-nos a eles, ao inferno e paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade.” (Helder, 1994: 53)

As explosões urbanas encontram-se generalizadas na Europa e noutros continentes e não estão necessariamente conotadas à pobreza.

A produção de habitação e a requalificação do espaço urbano terá de ser orientada para o desenvolvimento e terá como destino a qualidade e a melhoria de vida dos habitantes promovendo a iniciativa, capacidade e responsabilidade individual, jurídica[8] e social dos beneficiários dos programas, de uma forma sustentável e que combata o ciclo da pobreza de recursos e de empobrecimento social. O que significa considerar nas suas práticas a vertente social (conceitos de dignidade pessoal, pertença e participação social na comunidade), a vertente política (direitos e deveres de cidadania e participação ativa) e a vertente socioeconómica (igualdade de oportunidades e níveis mínimos de benefícios).

Através de uma organização ascendente, acompanhando e ajustando a evolução e o resultado dos processos e com o objetivo de envolver as populações nas soluções e as responsabilizar pelos resultados; estabelecendo metodologias periódicas de monitorização de bens e investimento, providenciando apoio de acompanhamento e gestão de projetos, próprios ou em parceria, mas sempre pela integração responsável dos parceiros e pela procura da autossustentabilidade e autonomia financeira dos projetos.

Os problemas e as necessidades têm de ser identificados e reconhecidos pelos beneficiários e orientados para projetos e programas que assegurem continuidade sustentável no tempo, contratos-programa estabelecidos com as populações, pequenas empresas e instituições já existentes, grupos comunitários organizados que representem setores da população, pessoas que contribuam para o desenvolvimento social local ou cuja atividade e competência possa ser promovida.

Promovendo as competências pessoais e sociais, valoriza-se a singularidade, estabelecem-se laços afetivos e de confiança entre indivíduos, grupos e instituições, fortalece-se o estado de direitos e deveres, gera-se uma economia empreendedora, promovem-se competências e ações de educação e qualificação pessoal, social, profissional e cultural, organiza-se a manutenção do espaço e dos bens coletivos. Providencia-se o aparecimento na sociedade de indivíduos, empresas e organizações, que reforçam o apoio à família, à saúde, aos idosos, às crianças, aos grupos sociais de risco e às pessoas expostas a vulnerabilidade social. (Guerra et al, 2007).

 

Lawrence Weiner, A Bookcase for onestar press. (prateleira de livros, 2007) (livros, 2000-2007).

 

4. Reprodução social e direitos de cidadania

Os programas de habitação social desenvolvidos pelo Estado, nacional como internacionalmente, têm falhado o seu objetivo de retirar as populações da margem da economia e do direito à cidade (urbanidade, cidadania), ora pela forma (inadequado ordenamento territorial e funcional do espaço urbano e arquitetónico), ora pelo conteúdo (gestão descendente, inadequada contratualização de programas e investimentos), reforçando sempre a figura da entidade pública (das entidades e seus mediadores), protetora, providencial e paternalista, diminuindo assim a sua autoridade de interesse coletivo.

Neste sentido a produção e a requalificação do espaço urbano terá de ser parte estratégica de uma orientação para o desenvolvimento a várias escalas, integrado nas políticas e programas de orientação nacional até às políticas mobilizadoras dos diversos agentes locais, administrativos, assistenciais e privados. “Partnership, strategy and sustainability form a troika of approaches that determine and drive successful regeneration”(ROBERTS; SYKES, 1999: 307-309). Estas iniciativas serão acompanhadas e participadas pelos habitantes e as suas organizações, num sentido de construção de qualidade de vida, de promover oportunidades de educação, formação e emprego[9]. Iniciativas que aportem reforço na educação cívica e ambiental, integrem as populações nas redes e comunidades globais, acentuando o espírito cosmopolita e de cidadania, criando uma boa imagem social e espacial (HARVEY, 1995: 59).

“Relembrar hoje o esquecido processo SAAL, permite-nos reequacionar os nossos instrumentos de análise e intervenção na cidade contemporânea. Não só porque esse processo nos revela ensinamentos de intervenção na cidade existente –uma das questões da contemporaneidade –mas também porque nos abre perspetivas metodológicas no enfoque das políticas de gestão urbana. Quando hoje reivindicamos para o planeamento e gestão das cidades uma metodologia flexível e seletiva no estabelecimento das suas prioridades, capaz de reintegrar componentes tipológicas, morfológicas e sociológicas na definição estratégica do espaço urbano, esquecemo-nos por vezes, que a cicatrização dessas fraturas foi já ensaiada há duas décadas atrás.” (GRANDE, 2002: 154).

 

5. Qualificação do espaço intersticial, periférico e fragmentado

Em Portugal a metapolização ocorreu “com a sobreposição de três fases clássicas dos processos de urbanização: primeiro a concentração urbana, com a urbanização em mancha de óleo, urbanizando vazios; depois a suburbanização, já numa segunda conquista depois dos perímetros; mais tarde, desurbanização difusa legal e ilegal; para fechar o ciclo, uma reurbanização que é o que se está a dar agora com a nova cultura do centro, da cidade consolidada, embora com um defeito gravíssimo, que é o de nunca se dizer o que se faz à outra, à não consolidada. O que significa que ficamos sem saber o que fazemos às periferias, enquanto que sobre os centros históricos poderemos dizer que já não haverá mais nada a inventar (…) depois de Bolonha e das OPAHs francesas, e das experiências pioneiras portuguesas (Barredo, Évora, Guimarães), entre 74 e 85…” (PORTAS, 2005a: 301).

Esta reflexão parece querer encerrar o assunto sobre os centros históricos. Ora sabe-se que é um problema bem longe de estar encerrado, cuja resolução estará sempre ligada à criação de medidas integradas e inclusivas das novas extensões urbanas e das suas características específicas. A cidade tradicional ocupa agora uma fração cada vez mais pequena do território urbano. No entanto, a imagem que a cidade tradicional aufere, apesar dos múltiplos problemas que atravessa, chama a si os valores que cultural e historicamente herdou: valores de autenticidade (história), de originalidade (estéticos), de identidade (sociais), simbólicos (política), de valia (económicos), de raridade (científicos), de permanência (antiguidade), de continuidade (ecológicos). O debate que hoje a cidade de Lisboa estabelece, com urgência, para encontrar medidas para revitalizar e reposicionar o seu centro, resulta da uma centralidade perdida em favor dos novos centros e da ameaça de perda dos valores tradicionais. Os novos “centros”, que entretanto se consolidaram na própria cidade – sendo disso exemplo a zona do Parque das Nações e os centros, mais ou menos especializados, que aparecem na extensão difusa da GAML, reposicionam as questões da revitalização-requalificação urbana integrada, como condição de desenvolvimento e sustentabilidade dicotómica de valores que se encontram ameaçados.

A cidade tradicional, com centralidades integradoras e polivalentes, com os seus territórios articulados, em tecidos urbanos diferenciados e reconhecíveis social e funcionalmente e assente na densidade de relações sociais e nos usos multivariados, transformou-se. Assenta agora em nova moldura espacial e funcional, em permanente alteração estrutural, morfológica e tipológica, formando uma sucessão descontínua de territórios urbanizados, heterogéneos e fragmentados, que é preciso interligar.

A revitalização de centros históricos, o urbanismo comercial[10], a reabilitação de edifícios e conjuntos de valor histórico e simbólico, as zonas urbanas nobres ou em situação de frentes ribeirinhas ou costeiras, são temas apetecíveis para as políticas de regeneração, ocupando um lugar central de visibilidade social e política. Mas estas políticas terão de se articular, estratégica e simultaneamente, com a produção e a requalificação do espaço intersticial, periférico e fragmentado, espacial e socialmente fraturado, com programas para diversos estratos sociais e económicos, induzidos por um espaço público atrativo, equipamentos coletivos multifuncionais e por formas urbanas e arquitetónicas de excelência em conforto, durabilidade e sensibilidade, que assumam a dignificação social dos sítios e dos seus habitantes e os tornem reconhecíveis e diferenciáveis.

 

 

 

6. Conclusão

Saber acompanhar em simultâneo, apropriando e integrando, a mutabilidade permanente do território, os seus vazios e os seus excessos, as polaridades sociais e económicas, as expectativas e expressões da população, com vista à equidade social e sua sustentação, torna urgente políticas que possibilitem a governância, numa forma de políticas integradoras dos diferentes níveis institucionais e civis, globais e locais, aprofundando a democracia representativa por novos processos deliberativos e consultivos, que influenciem a produção do território urbano na sua forma metapolitana.

Até hoje a intervenção mais visível das políticas públicas tem ficado delimitada e circunscrita a programas e áreas de intervenção especiais de habitação social e dos bairros dos grupos sociais classificados como problema, numa perspetiva mais assistencialista do que de desenvolvimento.

Como já referido, o habitante é um sujeito coletivo e individual, detentor de uma experiência ligada ao residir naquele local e na sua habitação. Atender ao nível do quotidiano[11], ligado aos detalhes da vida e movimento dos habitantes, deveria substituir-se à atitude considerada distante, abstrata e normativa, comum a corporações, arquitetos, urbanistas, políticos e instituições, e à mentalidade do Estado-protetor, passando a reintroduzir-se a presença de uma urbanidade – o lugar da casa, o lugar na cidade.

É necessária uma política de cidade que não articule só a ação sobre o património imobiliário, mas também que inclua outras ações em favor dos múltiplos aspetos da vida social e democrática local e metapolitana, em processos democráticos, não corporativos, de representação ascendente e de debate sobre o futuro e a gestão à escala da cidade expandida, inscrevendo o indivíduo em relação à escola, ao trabalho, à vida associativa, ao lazer, ao bairro, à habitação… à sua cidade, isto é, na vida cívica.

 



[1]”Não há o social por um lado, o território por outro, ou ainda o económico, o ambiente, etc. Todas as dimensões do desenvolvimento estão intimamente articuladas e o grande desafio é o entendimento da complexidade sistémica dos problemas e a capacidade de desencadear uma ação integrada pensando a cidade como um todo”. (GUERRA et al, 2007: 240)

[2]Sobre a gestão das cidades, entendida numa visão holística de funcionamento, imprimir inteligência e sustentabilidade aos seus três ingredientes básicos, os sítios, as redes e o espírito cosmopolita, passa pela configuração dos sistemas de governança e financiamento. João Ferrão foca a atenção nos planos estratégicos, que precedam e enquadram os de natureza normativa de forma a que o planeamento urbano seja “cada vez mais processual e estratégico, mais participado e responsabilizador”, criador das sinergias necessárias à volta de projetos estratégicos que revitalizem as cidades, cf. JoãoFerrão et al. “Intervir na Cidade: Complexidade, Visão e Rumo”, in PORTAS, Nuno; DOMINGUES, Álvaro; CABRAL, João. Políticas Urbanas. Tendências, estratégias e oportunidades, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, 218-225.

[3]Sobre a hierarquia de influência das cidades cf. Peter Hall et al. “The Changing European Urban System”, in op. cit., 2007: 226-235.

[4]Segundo Ascher, Management estratégico urbano: substituição das linearidades planificadoras por empreendimentos heurísticos (que procedem por avaliações sucessivas e hipóteses provisórias), iterativos (método de resolução de uma equação de uma equação por aproximações sucessivas), incrementadores (quantidade a que se acresce uma variável a cada ciclo de um nó do programa) e recorrentes (cada termo é função dos termos imediatamente precedentes), fazendo as avaliações necessárias que integram os feed-back (regulação das causas pelos efeitos; modificação de que precede pelo que se segue; ver contrarreação e retro-ação) e redefinem os elementos estratégicos (op.cit.: 82) (tradução da autora).  Privilegiar os objetivos em relação aos meios, integrar novos modelos de performance, adaptar as cidades à diversidade das necessidades, conceber os locais em função de novas práticas sociais, saber agir numa sociedade fortemente diferenciada, requalificar as missões dos poderes públicos, responder à variedade dos gostos e da procura, promover um qualidade urbana nova e adaptar a democracia à terceira revolução urbana.

[5]Se considerarmos as três dimensões inter-relacionadas de exclusão social: vertente económica (rendimento e acesso a bens e serviços); vertente social (conceitos de dignidade pessoal, pertença e participação social na comunidade); dimensão política (direitos de cidadania: civis–justiça, liberdade, expressão; políticos–direito de participação; sócio-económicos–igualdade de oportunidades, níveis mínimos de benefícios). (BHALA; LAPEYERE, 1997).

[6]O fenómeno clandestino sofre uma grande transformação na última década do século XX, na sequência da publicação do Regime Excecional para a Reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI), (lei 91/95 de 2 de setembro), alterando a postura perante o fenómeno das partes envolvidas: municípios, administração central e proprietários. Começando pela identificação, quantificação e delimitação dos polígonos das AUGI (no levantamento de 1996, na GAML, estão contabilizadas 1273 AUGI representando aproximadamente 80% do total, sendo destas, 97% da construção moradias), este processo tem vindo a experimentar a melhoria dos conceitos, metodologias e técnicas de intervenção, reforçando-se o papel do município como interveniente. Sendo, ao nível concelhio uma situação muito diversificada, quer em termos de incidência, quer em relação às estratégias municipais, acresce ainda a imbricada questão de tipos de parcelamentos (loteamentos, avos, compropriedade, conformidade de uso do solo e dos seus planos, conformação jurídica, etc..) e de critérios de escolha de intervenção. É um trabalho de caso a caso, que requere o apoio de equipas especializadas no terreno, em trabalho de levantamento, análise e quantificação, em estreita negociação com os moradores e munícipes. A situação do clandestino é analisada no estudo de Helena Rolo com correspondendo a uma “patologia urbana”, contribuindo para os desequilíbrios regionais, periferização das cidades, sugerindo uma forma mais abrangente de reconversão, de forma a introduzir uma melhoria qualitativa dos espaços assim urbanizados. Rolo, Helena Rodero. “Atualidade do Fenómeno Clandestino na GAML”, comunicação apresentada no Encontro “Áreas Urbanas de Génese ilegal, que futuro?”, Sesimbra, 6 e 7 de dezembro de 2007.

[7]Mais de um milhão de pessoas da Área Metropolitana de Lisboa (AML) tem habitações em zonas definidas como Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI). Em 2005, as estatísticas indicavam que existiam 1273 aglomerados habitacionais com estas características.

[8]A relocalização da confiança fundada na relação de direito, no quadro dos processos de territorialização, decorrentes do urbanismo social, pode contribuir para a estabilidade dos contextos urbanos. O direito apresenta duas faces: é um instrumento de organização da ação e das interações, um conjunto de regras de jogo para os atores, mas também pode ser o meio de ativar a simbólica social e estimular a produção imaginária individual e coletiva, permitindo o compromisso e a resolução de conflitos. cf. AAVV. Les Règles du Jeu Urbain. Entre Droit et Confiance, direção de Alain Bourdin Marie-Piere Lefeuvre e Patrice Melé, Descartes & Cie, Paris, 2006.

[9]Soulet distingue o trabalho social generativo, de promoção, habilitante, do paliativo, de reabilitação, pois considera a vulnerabilidade dos atores sociais que é preciso trazer à participação social pelo acompanhamento personalizado, de forma a evitar uma maior degradação do indivíduo valorizando a sua capacidade de ser, com vista a não quebrar os últimos laços. Reflexão sobre este tema cf. – Soulet, Marc-Henry et al. “O Trabalho Paliativo: Entre Redução de Riscos e Integração Relativa”, in Cidades: Comunidades e Território. Editor Isabel Guerra, nº 15, CET – Centro de Estudos Territoriais, ISCTE –Instituto Superior Técnico, Lisboa, dezembro 2007, 11-27.

[10]  Sobre as transformações estruturais do pós-fordismo: “Ao longo das últimas três décadas temos assistido a profundas alterações sociais e económicas, a saber, resumidamente: a crescente transferência de emprego do setor industrial para o setor dos serviços; o crescimento florescente de novas tecnologias de comunicação e de transferência instantânea de informação; o domínio dos grandes grupos económicos e a internacionalização dos seus investimentos; a entrada das mulheres no mercado de trabalho e consequente s alterações na estrutura do agregado familiar; o acentuado recuo do estado-providência e o enfraquecimento do movimento sindical; a crescente privatização dos bens e atividades tradicionais do Estado; a competição inter e intraurbanapela acumulação de capital fixo em projetos imobiliários; a emergência de parcerias entre os setores público e privado em atividades de desenvolvimento urbano; e a articulação de novos valores liminais e ecológicos por parte da classe média”, cf. Balula, Luís et al. op.cit., 2007: 57.

[11]”O pensamento sobre o urbanismo tende a valorizar os grandes movimentos e as grandes funções urbanas e, frequentemente, esquece a escala geográfica da vida quotidiana.” (Guerra et al, 2007: 238).

 

Bibliografia

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VIRILIO, Paul – The Overexposed City. (trad. de L’Espace Critique, Christian Bourgeois, Paris,1984). New York: Zone ½, Urzone Inc, 1986.

 

Legendas das figuras e créditos

Fig 1. – Lawrence Weiner, Empowerment Cannot Be Translated As Entitlement, 200 x 21,5 x 36 cm (H), Plywood, Plastic letters, red paint, screws, em rede, http://www.onestarpress.com/-bookshelves?debut_acc_1=6

Fig 2  –  AAVV. Meaning in Architecture. Editado por Charles Jencks & Georges Baird, Barrie & Rockliff. Londres: The Cresset Press, 1969, 175 eHome Owners Hand Book. Nova Iorque: Housing Publications, 1935.