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Karolyna de Paula Koppke

karolyna.koppke@fau.ufrj.br
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROARQ/UFRJ). Professora assistente do curso de Arquitetura e Urbanismo do Ibmec RJ, Brasil.

 

Para citação: KOPPKE, Karolyna de Paula – Para uma historiografia dos deslocamentos: pensar o século XIX entre a Europa e a América. Estudo Prévio 23. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2023, p. 63-79. ISSN: 2182-4339 [Available at: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/23.6

Artigo recebido a 30 de agosto de 2023 e aceite para publicação a 15 de setembro de 2023.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Para uma historiografia dos deslocamentos: pensar o século XIX entre a Europa e a América

 

Resumo

Este ensaio pretende pensar os deslocamentos entre fronteiras geográficas como eixo para a escrita de uma história da arte e da arquitetura entre a Europa e a América. Toma por esteio um recorte da biografia de Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879) e a sua viagem de formação a Itália. Ao fazê-lo, coloca no centro da análise a produção intelectual de um ator que, já no século XIX, empreendeu esforços para a construção de uma cultura comum – mas não homogénea – a partir da travessia do Atlântico em duplo sentido. Entendemos que a atenção a esses deslocamentos geográficos nos ajuda a compreender deslocamentos de outra ordem – agora, historiográficos – que cedo realizou para a construção de uma história da arte e da arquitetura próprias à ideia de nação brasileira, nessa época em formação.

 

Palavras-chave: Historiografia da arte e da arquitetura no Brasil; Deslocamentos; Manuel de Araújo Porto-alegre; Grand Tour; Arqueologia.

 

Introdução [1]

No artigo Araújo Pôrto-Alegre, precursor dos estudos de história da arte no Brasil, publicado em 1944 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898-1969) atribui àquele artista e homem de letras de Oitocentos a posição de “patrono venerado” (p. 131) do órgão de proteção do património nacional recém estabelecido. Como se sabe, no trabalho quotidiano do antigo Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), organizado em 1937, uma correlação estreita entre modernidade e história foi estabelecida. Mas não qualquer história. Aqueles intelectuais que, nos anos de 1930, tomaram para si a tarefa de preservar as manifestações da cultura brasileira que consideravam genuínas optaram pela construção de uma narrativa pautada por uma lógica capaz de situar e justificar as ações no presente, orientadas, por sua vez, na direção de um projeto compartilhado de futuro. Rechaçar a produção do século XIX e classificá-la como estrangeira foi parte da estratégia de construção dessa narrativa. Curioso se torna, nesse sentido, o lugar atribuído, pelo nome mais importante dos primeiros tempos do SPHAN, Rodrigo Mello Franco, a Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879).

Tomaremos aqui por esteio a biografia do homem de múltiplas facetas que foi Porto-alegre, com especial atenção ao desenhista, pintor de paisagem, crítico e historiador da arte. Sua trajetória – com destaque para o período que despendeu na Itália e para as aulas de arqueologia que ali acompanhou – tem-se revelado útil para a compreensão da centralidade, já no século XIX, das trocas estabelecidas a partir das múltiplas travessias do Atlântico, na época empreendidas em condições e sentidos diversos. Um tempo novo então se desenhava. Tempo que exigia, para a sua interpretação, ferramentas também novas, para cuja construção Porto-alegre contribuiu ativamente, como se verá. As trocas através do Atlântico vão permitir, pouco a pouco, a formação de uma cultura comum, não imposta e nem uniforme, mas – este o nosso ponto – compartilhada. É assim que, aqui, nos interessam os deslocamentos. Num primeiro momento, os geográficos. Mais adiante, aqueles de viés subjetivo, decorrentes de uma perceção nova do outro e, especialmente, de si. Ensaiamos, portanto, uma prática historiográfica que se afasta da perceção das fronteiras geopolíticas como instâncias cristalizadas e evita, em consequência, a postura apriorística e dicotómica provocada por um tal posicionamento. Ao se concentrar na mobilidade e no tempo breve de uma vida, o texto convida à reflexão acerca das possibilidades de escrita da história que, sem desconsiderar as assimetrias, não as estabelece como ponto de partida. Porque Porto-alegre e os seus contemporâneos puderam pensar e, no exercício laborioso do pensamento, extrapolar as fronteiras de diversas ordens – políticas, económicas e sociais – que pautaram os ritmos do tempo em que viveram.

 

Entre o sujeito e as estruturas: uma mudança historiográfica

A história comparada foi, durante boa parte do século XX, a abordagem por excelência para se pensar a escrita de uma história da América Latina. Dois caminhos tradicionalmente conduziam esse modo de operar. A escolha e a interpretação dos fenómenos davam-se a partir da comparação entre nações do próprio subcontinente ou – opção ainda mais corriqueira – entre nações latino-americanas e europeias. Desta última postura, resultava, normalmente, uma narrativa estabelecida enquanto via única. 

Proposta estabelecida em finais dos anos de 1920[2], a comparação vai-se convertendo em objeto de crítica a partir dos anos 1970, quando as práticas historiográficas tomam novos rumos, alavancados pelo triunfo intelectual de disciplinas como a linguística, a sociologia ou a antropologia, que agora colocavam em ameaça o primado conferido ao estudo das conjunturas económicas ou demográficas e das estruturas sociais que demarcaram o fazer historiográfico apoiado nas fronteiras nacionais. Pouco a pouco, vai-se formulando uma defesa da ancoragem da pesquisa no objeto e não nas estruturas de que ele é parte. Roger Chartier, por exemplo, no seu texto seminal O mundo como representação (1991), recordará que tais estruturas são, assim como as próprias práticas nelas entremeadas, produzidas justamente por representações, contraditórias e em confronto, elaboradas pelos indivíduos e grupos para dar sentido ao seu mundo.

A edição dos Annales. Histoire, Sciences Sociales de novembro-dezembro de 1989, intitulada Histoire et sciences sociales. Un tournant critique?, em que é publicado o referido texto de Chartier, marca, de facto, um momento significativo para a redefinição da agenda para a pesquisa histórica em França. Sobre tal edição, François Dosse (2010) comentará que o engajamento numa direção nova, pautada na atenção aos atores, resulta numa reconfiguração do tempo, a partir da reavaliação do curto prazo, da ação situada, da ação em contexto. Essa consciência da historicidade, abriria, segundo o autor, duas perspetivas. A primeira diz respeito à apreensão da historicidade das sociedades estudadas, que se desdobra na redescoberta da força dos fenómenos singulares e, consequentemente, numa prática historiográfica atenta aos eventos ou às biografias. A segunda refere-se ao entendimento, por parte do historiador, do tempo em que escreve, incorrendo-se num afastamento da ingenuidade inerente à ideia de que aquilo de que ele fala é, necessariamente, o real.

Também no ambiente francês, convém destacar, na mesma época, a circulação das propostas dos micro-historiadores italianos, para a qual foi essencial o trabalho empreendido por Jacques Revel. No seu Jogos de escalas: a experiência da microanálise, cuja primeira publicação data de 1996, parte da constatação de que está, naquele momento, ainda em aberto o problema da articulação entre a experiência singular e a ação coletiva, isto é, entre o sujeito e as estruturas. Ao descrever os mecanismos empregues pelos adeptos da micro-história, informa-nos que praticam um trabalho de contextualização múltipla, a que se refere como “jogo de escalas”. Relembra que os atores históricos participam em processos, inscrevem-se em contextos de dimensões e níveis variáveis e, nesse sentido, não haveria hiato ou oposição entre uma história local e uma história global. A aproximação à experiência de um indivíduo, por exemplo, permitiria perceber uma modulação particular da história global, tratando-se, portanto, de uma outra forma de cartografar as dimensões social e cultural. Essa conceção do problema permitiria um afastamento de sua simplificação, isto é, de pensá-lo em termos de força/fraqueza, autoridade/resistência, centro/periferia, deslocando a análise para os fenómenos da circulação, negociação e apropriação em todos os níveis. A intenção passa a ser mostrar como, na desordem, os atores sociais inventam um sentido de que, simultaneamente, tomam consciência.

Gradualmente, o caminho vai sendo aberto para que Chartier, no início dos anos 2000, publique o seu escrito em forma de alerta acerca da premência de se trabalhar na ambiciosa proposta de uma história global. Um número inteiro dos Annales será dedicado ao tema, evocando propostas que lidam com a conexão e a circulação, abordagens que se estabelecem enquanto crítica à comparação. Rejeitando a preferência, a priori, por uma ou outra escala de trabalho, recuperando conceitos basilares à fundamentação do seu ofício de historiador e a eles acrescentando outros, Chartier convida à reflexão:

“L’histoire des connected histories ne peut donc éviter une réflexion rigoureuse sur les catégories d’analyse les plus adéquates à son projet. Comment penser la relation entre appropriation et acculturation, entre réemplois inventifs et arrachements culturels? Comment caractériser les processus d’«interaction» ou de «négociation» (terme cher, à la fois, à la microhistoire du monde social et à la critique littéraire new historicisť) selon qu’ils opèrent à l’intérieur de relations de domination ou dans des rapports d’échange? Ou encore, comment situer les métissages culturels entre colonisation et globalisation des imaginaires?” [3] (CHARTIER, 2001: 123, itálico no original)

É assim que, debruçados sobre os ombros de um homem que se quis global já no século XIX, como Araújo Porto-alegre, ensaiaremos, aqui, uma escrita da história que se concentra na mobilidade e transposição de fronteiras. Estudaremos América e Europa – Brasil e Itália, mais especificamente – não como entidades homogêneas e abstratas, a segunda educadora da primeira. É a trajetória desse sujeito, entremeada nas próprias condições que a balizaram, o que nos interessa para a construção de uma narrativa mais complexa justamente porque situada na experiência concreta da vida.

 

O jovem Porto-alegre e a sua viagem de formação

A 25 de julho de 1831, contando então 24 anos de idade, o jovem Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879) parte, acompanhado do seu mestre e amigo Jean-Baptiste Debret (1768-1848), rumo a Paris, com o intuito de completar a formação artística adquirida na recém-estabelecida Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) do Rio de Janeiro. Deixa atrás de si a capital que conhecera poucos anos antes, saído de seu Rio Grande de São Pedro natal. Um Rio de Janeiro em turbulência, permeado pelas incertezas decorrentes da abdicação do imperador Pedro I (1798-1834), ocorrida alguns meses antes. Capital da nação que então se formava, onde tudo, inclusive a própria história, estava ainda por construir.

Na Paris da Monarquia de Julho, frequenta o ateliê de Antoine-Jean Gros (1771-1835)[4] que, em decorrência da exiguidade de recursos, abandona pelas aulas de arquitetura de François Debret (1777-1850), irmão do seu antigo mestre na academia brasileira e membro do Institut de France. É através dos seus Apontamentos biográficos, datados de 1858 [5], que sabemos que a casa do arquiteto francês foi ponto de reunião de figuras da maior envergadura, dentre as quais músicos, pintores e escultores. É nesse tempo que trava contato, por exemplo, com personagem do porte de Almeida Garrett (1799-1854), que desconfiamos ter sido fundamental para o posicionamento, por Porto-alegre, da herança lusa na história da arte brasileira[6].

A viagem à Europa alcançará o seu ponto alto em Itália, tão fundamental para qualquer jovem artista ou literato que se quisesse bem formado desde, pelo menos, o século XVIII [7]. Parte para a península, em companhia do médico e poeta Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), a 4 de setembro de 1834. Ali permanece por pouco mais de um ano, empreendendo um amplo percurso, que inclui cidades como Milão, Bolonha, Parma, Florença, Pisa, Siena, Nápoles e, sobretudo, Roma[8]. É nesta cidade que acompanha as aulas do arqueólogo e filólogo italiano Antonio Nibby (1792-1839) e é, justamente, como fruto desse contato que chega até nós um exemplar do livro Le mura di Roma, de autoria do professor italiano. Existe hoje um exemplar da obra no acervo da biblioteca de obras raras da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro[9], em que consta, na página de rosto, uma dedicatória do próprio Porto-alegre datada de 1857 (Figura 1). Deve-se, aqui, recordar ter sido este o ano que encerrou o curto período em que Porto-alegre esteve à frente da academia enquanto seu diretor[10]. Neste posto, promoveu uma ampla reforma do ensino das belas-artes – a maior por que passou a instituição durante o Império – empenhando-se significativamente na ampliação do acervo da biblioteca. Nessa mesma reforma, institui o curso Historia das artes, esthetica e archeologia, com três anos de duração, o último deles dedicado exclusivamente ao estudo desta última disciplina[11] (UZEDA, 2000).

Figura 1 – Página de rosto de exemplar do livro Le mura di Roma (Nibby, 1820), com dedicatória de Manuel de Araújo Porto-alegre (Fonte: Acervo da Biblioteca de Obras Raras da Escola de Belas Artes da UFRJ – EBAOR. Fotografado pela autora).

 

Le mura di Roma

É Marcelo Bueno, em sua tese sobre essa mesma reforma (2017), quem faz o registo mais detalhado sobre a experiência de Porto-alegre como aluno de Nibby. Segundo o autor, o arqueólogo italiano fora responsável por escavações no vale do Coliseu e em parte do Fórum Romano. Era professor da Universidade de Roma desde 1820 e o seu curso enquadrava-se perfeitamente nos padrões definidos para o estudo da arte sob o viés académico, dada a atenção que nele se dispensava aos textos dos autores antigos. Aos futuros arqueólogos, era então necessário o domínio do grego e do latim. Nibby mantinha, inclusive, correspondência regular com a Académie des beaux-arts, o que teria despertado o interesse de Porto-alegre pelas suas aulas[12]. O programa do curso dividia-se em três grandes áreas: o estudo topográfico dos lugares, a análise dos aspectos culturais dos povos antigos e o conhecimento da herança material do Egito, Grécia e Roma antigos.

No que concerne, especificamente, a Le mura di Roma, foi a obra publicada ainda em 1820, nesta mesma cidade, pela casa editorial Vincenzo Poggioli, com textos elaborados pelo próprio Nibby. Os desenhos são da autoria de Sir William Gell (1777-1836), arqueólogo e ilustrador inglês, que viveu um longo tempo na Grécia e no sul da Itália, tendo sido reconhecido como um arqueólogo clássico pelas suas contribuições na localização do sítio arqueológico de Troia e levantamentos das ruínas de Pompeia.

Ainda no prefácio do livro, Nibby justifica a sua escolha por estudar as muralhas de Roma: mesmo constituindo-se enquanto herança material daquela importante civilização, teriam sido sempre consideradas menos dignas de atenção, tradicionalmente preteridas em favor de conjuntos arqueológicos entendidos como de maior relevância. Concebido como um tratado, o trabalho está organizado em sete capítulos além do referido prefácio. O seu conteúdo abarca desde a fundação da cidade – que também incluía uma dimensão mitológica – até às condições de conservação das muralhas nos princípios de século XIX[13].

No exercício, que orienta toda a obra, de situar com precisão as muralhas e suas portas, Nibby vai recorrendo aos escritos deixados por autores antigos, construindo notas de rodapé a partir de excertos em grego e/ou latim (Figura 2). Fica assim clara, ao longo do livro, a tradicional querela entre “antigos” e “modernos” que marca a construção da história no Ocidente, com Nibby recorrendo sistematicamente à autoridade dos primeiros. Privilegia-se o passado, em detrimento do presente e do futuro. Um passado que é ali tomado como provisor de exemplos que direcionam o modo de agir no presente.

Figura 2 – Notas de rodapé nos. 94 e 95 do livro Le mura di Roma (Nibby, 1820), com excertos, respetivamente, em latim e grego (Fonte: Acervo da Biblioteca de Obras Raras da Escola de Belas Artes da UFRJ – EBAOR. Fotografado pela autora).

 

No final, um apêndice composto por 32 desenhos gravados em cobre permite o registo dos pontos considerados como de maior interesse, quer pela sua significação histórica quer pela vista “pitoresca” que encerram. Deles, Nibby destaca a exatidão no levantamento das informações que orientaram a sua execução. Integram também esse apêndice uma planta indicativa dos muros da cidade e uma descrição particular de cada desenho. Convém registar que, nos excertos justificativos dos enquadramentos escolhidos para se representar nessas gravuras, é recorrente o emprego da palavra “pitoresco”. Tal categoria estética havia sido recentemente definida pelo pintor e tratadista Alexander Cozens (1717-1786), de modo a estabelecer, para a pintura inglesa do século XVIII, uma escola de paisagistas, conforme descreve Giulio Carlo Argan (1997)[14]. Segundo o historiador e crítico italiano, essa poética, que encontrará seus expoentes nos pintores John Constable (1776-1837) e William Turner (1775-1851) “[…] medeia a passagem da sensação ao sentimento: é exatamente nesse processo do físico ao moral que o artista-educador é guia dos contemporâneos” (p. 18, itálico no original). 

Nas gravuras de William Gell, a categoria aparece como critério para a construção dos enquadramentos em 14 das 32 pranchas que compõem a publicação. É forçoso notar que, em pelo menos duas dessas pranchas[15], a qualidade de “pitoresco” aparece em oposição à importância do fragmento para a história, para cuja definição se adota o termo “monumento”[16]. Na seção de gravuras do livro, “sensação” e “conhecimento” vão assim colocando-se enquanto categorias opostas, ainda que componham uma só empresa intelectual (Figuras 3A e 3B). Como registamos, a ênfase de Nibby está na precisão que orientou os trabalhos de levantamento necessários à elaboração dos registos visuais – arqueologia e topografia eram, então, disciplinas irmãs – mas há, também, um interesse de outra ordem que, pouco a pouco, parece conduzir a um afastamento do belo metafísico que tanto havia interessado os artistas no século anterior. Está-se, agora, no mundo. O interesse é justo pelas suas imperfeições e peculiaridades. Tanto é assim que, em boa parte das gravuras de Gell, na construção da cena, a perspetiva científica perde importância em detrimento do recurso ao chiaroscuro e às texturas: o registo resulta corpóreo e não abstrato. O estudo do Le mura anuncia-nos, assim, que uma mudança significativa estava então em curso, mas que ocorre de forma gradual.

Figuras 3A e 3BTavola IX. Interno della Porta Pia e Tavola XVII. Mura fra l’anfiteatro e la Porta S. Giovanni; William Gell; 1820. Exemplos da oposição entre “monumental” e “pitoresco” (Fonte: Acervo da Biblioteca de Obras Raras da Escola de Belas Artes da UFRJ – EBAOR. Fotografado pela autora).

 

A tomada de “sensações” – ou a conversão de experiências em imagens – é justamente o que parece orientar a produção de grande parte dos poucos desenhos que nos chegam dessa passagem de Porto-alegre pela Itália[17]. No grafite intitulado Porta da cidade de Peruggia (Figura 4), por exemplo, é patente a referência ao trabalho de Nibby e Gell: evidentemente, para além do tema, também aqui não há um esquema geométrico informado pela perspetiva científica. Não se trata, propriamente, de um exercício de composição, mas da seleção de um enquadramento, de trabalho elaborado d’après nature. Mantêm-se os contornos, mas a cena constrói-se, predominantemente, a partir da atenção às variadas arquiteturas em fragmento, que se sobrepõem através do emprego de manchas mais claras ou mais escuras. Esse modo de operar é aprofundado numa cena como Tivoli (Figura 5), em que a natureza se sobrepõe, deliberadamente, ao conjunto construído. Realizado em traços rápidos, à maneira de esboço, o trabalho revela-nos um Porto-alegre dividido entre formação e experiência, que se converte em anúncio precoce dos temas que o artista elegerá quando do seu retorno à América.

Figura 4Porta da cidade de Peruggia; Manuel de Araújo Porto-alegre; sem data; grafite, 26,5×43,0cm (Fonte: Acervo Artístico do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS, aquisição por transferência do Museu Júlio de Castilhos, 1978. Fotografado por Fabio Del Re & Carlos Stein VivaFoto).

Figura 5Tivoli; Manuel de Araújo Porto-alegre; 1863[18]; grafite, 13,5×30,0cm (Fonte: Acervo Artístico do Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS, aquisição por transferência do Museu Júlio de Castilhos, 1978. Fotografado por Fabio Del Re & Carlos Stein VivaFoto).

 

A travessia transatlântica e o (re)encontro com a América

Em A ressignificação da ideia de arquitetura: a cena americana e a educação dos sentidos (2021), a professora Margareth da Silva Pereira toma por esteio a trajetória desse arquiteto francês para tratar da ressignificação pela qual passou a prática da arquitetura entre finais do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX.

Grandjean de Montigny (1776-1850) empreendera a travessia transatlântica quinze anos antes de Porto-alegre – e, convém registar, em sentido contrário – para fundar, com um grupo de expatriados franceses, a instituição que formaria o artista brasileiro décadas mais tarde. Segundo Silva Pereira, para que aquela ressignificação se pudesse dar, a cena americana teria desempenhado um papel essencial, dada a transformação, que à altura se processava, acerca da maneira de se perceber a Antiguidade. Aos poucos, aquela velha querela entre “antigos” e “modernos” vai-se alargando para incluir outras categorias, como o “arcaico” e, mais adiante, o “primitivo”, cuja formulação depende efetivamente da experiência americana.

Recordemos que Grandjean de Montigny, laureado com o Grand Prix de Rome em 1799[19] e, habilitado, portanto, a realizar o seu Grand Tour por Itália, escolhe deixar-nos dessa viagem os registos da sua passagem pela Toscana, recolhidos em Architecture toscane, ou palais, maisons et autres édifices de la Toscane, elaborado em parceria com o seu colega e companheiro de viagem Auguste Pierre Famin (1776-1859) e publicado em 1815. A preferência, em diversos dos enquadramentos eleitos, por uma arquitetura rural imersa na paisagem, revela, para nós, o gosto pelo “arcaico” ou pelo “pitoresco”. É assim que podemos conhecer uma atenção primária daquele que se tornaria o professor de arquitetura no Rio de Janeiro ao passado enquanto acúmulo de fragmentos. É provável que Porto-alegre tenha conhecido as referências trazidas por seu mestre acerca da Toscana medieval e renascentista, em uma formação que reunia, no cotidiano do ateliê, as dimensões prática e teórica (Uzeda, 2000).

Margareth Pereira contrapõe, então, ao Grand Tour da Itália, o Grand Tour da América, de maneira que a cena americana estaria em oposição, agora, às ruínas de Roma, radicalizando a transformação epistemológica em curso e já anunciada em obras como Le mura di Roma. A América reeduca os sentidos porque nela, evidentemente, se aprofundam estranhamento e diferença. O fundamento dessa mudança parece ser a rearticulação do tempo e, por consequência, do espaço. Novidade que exigiria, em última instância, a revisão da própria noção de história. O passado, da maneira como se havia apresentado até àquela altura, isto é, enquanto plêiade de exemplos passíveis de repetição, está agora morto, arruinado. E é justamente essa consciência o que provoca a abertura, naquela passagem entre séculos, de uma “brecha do tempo” – para adotar os termos do historiador francês François Hartog (2021) – que se vai manifestar muito concretamente na rutura que constitui a revolução em França. A história é agora tomada enquanto campo de possibilidades para a rearticulação daquele passado, então moldável a partir dos projetos de futuro.

Mas o Porto-alegre do Grand Tour da Itália não é o mesmo do Grand Tour da América. O embate com os corpos do mundo que a experiência de formação em viagem lhe proporciona vem provocar, mesmo em solo americano, um estranhamento de si e do outro. A “sensação de não estar de todo”, no dizer de Flora Sussekind (1990), o incómodo de ver-se outro numa paisagem que permanece a mesma indica uma mudança de outra ordem, de contornos íntimos.

São as interrogações trazidas na mala que permitirão, em nosso entendimento, a maturação do conhecimento em arqueologia que aprendeu com o mestre Nibby. Conhecimento que encontra o seu auge nos diversos registos visuais da natureza brasileira que elabora durante a década de 1850. O problema é colocado talvez de forma mais simples em cenas nas quais o artefacto humano é protagonista, que resultam muito mais próximas dos registros de William Gell (Figuras 6A e 6B). Aqui, cabe bem a noção de “pitoresco” – ou de “arcaico” –, as ferramentas da arqueologia revelam-se úteis e o interesse está centrado sobre o fragmentário.

Figuras 6A e 6BEstudo de interior (atribuído); Manuel de Araújo Porto-alegre; sem data; grafite e aguada de sépia sobre papel, 21,2×29,9cm e Tavola IX. Interno della Porta Pia e Tavola II. Mura Capitoline; William Gell; 1820 (Fontes: Álbum de Manuel de Araújo Porto-Alegre / Coleção Martha e Erico Stickel / Acervo Instituto Moreira Salles e Acervo da Biblioteca de Obras Raras da Escola de Belas Artes da UFRJ – EBAOR, fotografado pela autora).

 

Mas é na observação atenta da natureza, tão basilar para a construção de um repertório visual que corresponda a uma ideia de Brasil, que se torna patente a contribuição não propriamente da arqueologia enquanto disciplina, mas da colocação em prática de um olhar arqueológico, formado no Grand Tour da Itália e trans-formado no Grand Tour da América. Dos vários estudos que elabora, o de maior relevância é, certamente, a Floresta virgem, de 1856[20] (Figura 7), construída enquanto exercício de crítica às imprecisões botânicas que o artista denuncia na tela Fôret vierge du Brésil, de autoria do conde de Clarac (1777-1847) e exposta no Salão de 1819. Trata-se, em última instância, de uma interrogação: onde nos caberia inserir, tomada uma concepção tradicional de passado que, agora, se desloca continuamente para trás e, por consequência, se estabelece enquanto esteio para a construção das narrativas adiante? É preciso uma larga manobra, que nos possa situar antes mesmo do tempo histórico. É a “paisagem sem tempo” de que nos fala, uma vez mais, a professora Sussekind (1990). Estão assim colocadas as condições para que se possa enunciar a noção de “primitivo”, preparada desde os primeiros contatos entre Europa e América, mas que agora vem posicionar-se ao lado das tradicionais categorias de “antigo” e “moderno”.

Figura 7Rio de Janeiro. Floresta virgem; Manuel de Araújo Porto-alegre; António de Pinho (gravador); c. 1856; litografia sobre papel, 18,6×27,6 (mancha) e 31,7×45,0 (suporte) (Fonte: Manuel de Araújo Porto-Alegre / Coleção Martha e Erico Stickel / Acervo Instituto Moreira Salles).

 

Na viagem a Itália parece tornar-se evidente, para Porto-alegre, a impossibilidade de repetição do passado. Se cada tempo e cultura são únicos, será único, também, aquilo que cada tempo e cultura produzirão. Mas é no retorno à América que o passado se consolida, efetivamente, como possibilidade de exercício livre. E é assim que esse passado poderá ser redesenhado. Aliás, é premente que o seja. Caminha-se, por consequência, no sentido de um esforço de reposicionamento em relação ao presente, configurado, necessariamente, a partir de uma reflexão acerca das intenções de futuro, que agora se colocam em jogo.

A atitude do crítico estende-se àquela do historiador: é também na década de 1850 e, mais especificamente, em 1856 – ano da sua obra Floresta virgem – que Porto-alegre conduz a empresa a que denominou Iconographia Brazileira (1856), ápice de seus projetos com vista à construção de uma história da arte nacional. Construção essa que lhe exige, em textos como a Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense[21], a manobra historiográfica de inserir, no rol dos grandes homens da nação, artistas brasileiros ativos antes da organização do ensino formal e académico, muitos dos quais homens pretos e pardos, numa sociedade escravocrata e avessa ao trabalho manual. O excerto seguinte, extraído dessa Memoria em processo, deixa ver o quão central é a formação em arqueologia para o fazer historiográfico em Manuel de Araújo Porto-alegre:

“A arqueologia tem, n’esta parte, trilhado uma vereda tão segura, que, em despeito a tradições erróneas, póde pelos vestigios de um templo, pelos restos de seus muros, pela sua ordenação, pelos fragmentos de sua architectura, pela execução de suas partes, pela expressão symbolica de suas esculpturas, por uma medalha, por um sarcófago, por uma encaustica, e por um fresco de muro, ou de soffito, fazer uma combinação engenhosa, uma comparação com os factos precedentes, que apresenta em resultado a verificação de uma época, e uma correcção na historia. Descartes foi o creador d’esta nova sciencia, quando disse, que o motor principal dos progressos do espírito humano não era somente a tradição, mas sim a analyse.” (p. 548-549, grifo nosso)

 

Para ligar dois hemisférios

Trazer para o primeiro plano a construção de saber ativada pela travessia do Atlântico significa atentar para uma cultura transatlântica que encontra condições de formulação justamente nos processos de encontro, negociação e reconfiguração que caracterizam a interação entre culturas. Em Porto-alegre os exercícios crítico e historiográfico só se podem colocar diante da dupla travessia do Atlântico, da ligação entre os dois hemisférios. O audacioso alargamento que promove, fundamental à construção de um passado operatório, dá-se diante da consciência da passagem do tempo e da possibilidade de rearticulação do tempo histórico que dela decorre.

Um pouco como a epifania em forma de queda do jovem Lucio Costa (1902-1998) – “Lá chegando, caí em cheio no passado, no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: […]” (Costa, 2018: 27). Palavras escritas quando do seu embate com os corpos da América, na viagem que faz à Diamantina, em 1924, exatos noventa anos mais tarde, portanto, que o giro italiano de Porto-alegre. A atenção a certos problemas historiográficos tem uma senda mais alongada do que a literatura canónica sobre o tema nos tem dado a ver.

Como se sabe, Lucio Costa, nascido em Toulon, obtivera a sua formação elementar entre Newcastle e Montreaux[22]. Falamos aqui, portanto, de homens cujas biografias se confundem com as travessias que empreenderam, compulsória ou voluntariamente, e que permitiram tecer compreensões particulares do outro e de si. Homens que, entre “colonização e globalização dos imaginários”, para tomar de empréstimo aqueles termos de Roger Chartier (2001), foram agentes ativos na construção e enfrentamento das questões de seu próprio tempo.

Para encerrar esta contribuição, deixemos que fale Francisco de Salles Torres Homem (1812-1876) que, contando então 22 anos de idade, afirma, em carta ao amigo Porto-alegre nas vésperas da sua partida rumo à Itália, que fora o homem feito para o movimento. De facto, foram muitos aqueles intelectuais – ele próprio um deles – que, no século XIX, formaram o seu olhar e construíram as suas poéticas em deslocamento entre Europa e América e vice-versa.

“Somos feitos para o movimento, e o progresso; sem movimento não há noção de felicidade. Dir-se-ia que a Providência, dando-nos os prazeres, levou a mira menos no adoçar os amargores da vida, do que no fazer desabrochar os gomos das faculdades que plantara no coração e no espírito do homem, e que aquela quietação d’alma, em que filósofos cifraram a felicidade humana, não é o repouso da morte, porém sim o progressivo e regular movimento da vida: tal é a constituição que nos deu a natureza! É talvez ela uma parte da humana imperfeição, mas releva confessar que assaz adaptada é ao nosso destino terrestre, que é o desenvolvimento, e não a imobilidade.” (SQUEFF, 2014: 61) [23].

 

Bibliografia

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Notas

  1. O presente artigo é fruto das reflexões encampadas no âmbito do projeto de doutoramento intitulado Cruzar o Atlântico e refazer o tempo: um estudo sobre o ensino de história para arquitetos em duas capitais americanas [1854-1864], desenvolvido no PROARQ/UFRJ, sob a orientação do professor Gustavo Rocha-Peixoto e coorientação da professora doutora Priscilla Alves Peixoto, a quem expressamos nossos sinceros agradecimentos pelo zelo e paciência com que nos têm conduzido nesse processo.
  2. Veja-se o texto inaugural de Marc Bloch, Pour une histoire comparée des societés européennes, publicado em 1928.

  3. “A história das histórias conectadas não pode, portanto, prescindir de uma reflexão rigorosa sobre as categorias de análise mais adequadas ao seu projeto. Como pensar a relação entre apropriação e aculturação, entre reutilizações inventivas e desenraizamento cultural? Como caracterizar os processos de ‘interação’ ou ‘negociação’ (termo caro tanto à micro-história do mundo social quanto à crítica literária new historicist) conforme operem em relações de dominação ou em relações de troca? Ou ainda, como situar o cruzamento cultural entre colonização e globalização dos imaginários?” (Tradução livre da autora)

  4. Sobre a formação recebida por Porto-alegre pelo barão Gros, consultar Bueno, 2017.

  5. Os Apontamentos biográficos, escritos em terceira pessoa, foram publicados pelo Jornal do Commercio, em edição de 19 de maio de 1922. Os originais foram consignados à Academia Brasileira de Letras e publicados na Revista da ABL, volume XXXVII, ano XXII, n. 120, dezembro de 1931 (Bueno, 2017).

  6. Está ainda por ser enfrentada a aproximação entre os projetos de Garrett, no campo da literatura, e de Porto-alegre, nos estudos de história da arte. O poema-balada de 1828, Adozinda, primeiro movimento de Garrett em direção a uma recolha de romances tradicionais portugueses, é tema de cartas escritas pelo poeta português endereçadas a Porto-alegre. Tais cartas podem hoje ser encontradas nos acervos do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro e do Real Gabinete Português de Leitura. O sentimento de apreço de Porto-alegre por Garrett parece-nos fundamental para apaziguar o mal-estar do incontornável posicionamento da herança lusa na história em construção da nação independente.

  7. A professora Margareth Pereira (2021) faz recuar a experiência do Grand Tour, em última instância, a Brunelleschi (1377-1446), mas aponta que sua condição de prática social indispensável à formação de literatos, arquitetos e artistas se irá estabelecer efetivamente apenas no século XVIII.

  8. Não pode visitar Veneza e Turim, então atacadas por epidemia de cólera morbus (ver os Apontamentos biográficos).

  9. No único trabalho dedicado especificamente à passagem de Araújo Porto-alegre pela Itália, a historiadora Letícia Squeff (2017) nos recorda de que restam poucos e esparsos registos acerca desse período de sua vida. O próprio artista comenta, nos seus Apontamentos biográficos, sobre ter perdido parte de sua produção em uma mala extraviada em Civitavecchia. Ainda assim, alguns poucos desenhos nos chegaram, como se verá adiante.

  10. O artista assume a posição em 11 de maio de 1854, a convite do imperador Pedro II (1825-1891), realizado ainda em 1853.

  11. Conforme os estatutos aprovados em 1855 (Brasil, 1856), a cadeira compunha a seção de Sciencias acessórias, em conjunto com as aulas de Mathematicas aplicadas e Anatomia e phisiologia das paixões. A demanda pela criação de uma disciplina de história da arte na instituição é, porém, significativamente anterior à reforma encampada por Porto-alegre, exigindo-nos recuar ao período em que Félix-Émile Taunay (1795-1881) dirigiu a academia, isto é, entre os anos de 1834 e 1851.

  12. Letícia Squeff (2017) nos recorda de que boa parte do trabalho de Nibby estava dedicada à descrição dos monumentos de Roma e arredores. Convertiam-se assim suas publicações em guias de viagem para os eruditos e interessados na cultura clássica praticantes do Grand Tour. Squeff enuncia o tema com que aqui trabalhamos, ou seja, a importância do aprendizado com o arqueólogo italiano para a formação de Porto-alegre. Enquanto, porém, a autora está concentrada no prestígio intelectual que o artista alcança após empreender seu giro italiano, nosso interesse se coloca, sobretudo, nas contribuições da formação em arqueologia para o reposicionamento do tempo histórico por ele empreendida em sua produção gráfica, pictórica e textual. 

  13. Assim se intitulam os capítulos: (i) Fondazione di Roma, e cangiamento del recinto di essa dai tempi di Romulo al Regno di Servio Tullio; (ii) Delle porte di Roma avanti il Regno di Servio Tullio; (iii) Del recinto di Servio Tullio, e del Pomerio; (iv) Delle porte del recinto di Servio Tullio; (v) Recinto di Aureliano; (vi) Recinto attuale di Roma, sua storia dai tempi di Onorio fino a’di nostri giorni; (vii) Stato attuale delle mura di Roma.

  14. Vale demorarmo-nos aqui sobre os fundamentos dessa categoria estética, conforme apontados por Argan: “[…] 1) a natureza é uma fonte de estímulos a que correspondem sensações que o artista esclarece e transmite; 2) as sensações visuais se apresentam como manchas mais claras, mais escuras, variegadamente coloridas, e não num esquema geométrico como o da perspectiva clássica; 3) o dado sensorial é naturalmente comum a todos, mas o artista o elabora com sua técnica mental e manual, e assim orienta a experiência que as pessoas têm do mundo, ensinando a coordenar as sensações e emoções, e também atendendo com o paisagismo à função educativa que o Iluminismo setecentista atribuía aos artistas; 4) o ensino não consiste em decifrar nas manchas imprecisas a noção do objeto a que correspondem, o que destruiria a sensação primária, mas em esclarecer o significado e o valor da sensação, tal como é, tendo em vista uma experiência não-nocional ou particularista do real; 5) o valor que os artistas buscam é a variedade: a variedade das aparências dá um sentido à natureza tal como a variedade dos casos humanos dá à vida; 6) não se busca mais o universal do belo, mas o particular do característico; 7) o característico não se capta com a contemplação, e sim com a argúcia (wit) ou a presteza da mente, que permite associar ou ‘combinar’ idéias-imagens, mesmo muito diversas e distantes.” (p. 18, grifos nossos).

  15. Tavola X. Castra Praetoria e Tavola XXVI. Arco detto di Druso nell’interno dela porta Appia.

  16. Essa oposição será retomada e conceituada através da matriz de valores proposta pelo historiador da arte austríaco Alois Riegl (1858-1905) para a compreensão do lugar atribuído ao monumento histórico nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas da passagem do século XIX para o XX. Em seu O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem (2014), cuja primeira publicação data de 1903, Riegl distinguirá as categorias de “valor de antiguidade” e de “valor histórico”, ambas tomadas enquanto “valores de memória”. O primeiro guarda relação direta com a noção de “pitoresco” e, para sua apreciação, não se exige propriamente um conhecimento.

  17. Squeff (2017) nos recorda que talvez esses registos se tenham realizado com a intenção de, mais tarde, ser convertidos em aquarelas ou litogravuras que ilustrariam o álbum de viagem que o artista tinha a intenção de publicar.

  18. Apesar de, nos dados técnicos referentes ao desenho, constar o ano de 1863 como aquele em que Porto-alegre o teria elaborado, é bastante provável que ele efetivamente pertença ao conjunto produzido quando da viagem de formação à Itália. O desenho também é tomado por Letícia Squeff (2017) como referência para estudar o período.

  19. Galardoado ex-aequo com Louis-Sylvestre Gasse (1778-1833). Dois anos mais tarde, Montigny parte para Roma para gozar do prêmio, onde permanece por quatro anos, antes de retornar à França, em 1805 (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Artes, 1979).

  20. Litografada por António de Pinho Carvalho (?-1895) e incluída no álbum O Brasil pitoresco e monumental, de Pieter Godfred Bertichen (1796-1866) (Kovensky; Squeff, 2014).

  21. Publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1841.

  22. Decorrente das constantes viagens do seu pai, Joaquim Ribeiro da Costa (1858-1937), almirante do corpo de engenheiros navais da Marinha brasileira.

  23. A carta pertence ao álbum de Manuel de Araújo Porto-alegre, parte da coleção Martha e Erico Stickel, salvaguardada do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. O excerto foi aqui reproduzido em conformidade à transcrição que consta em Kovensky.