Entrevista
PARTE 1
PARTE 2
Filipa Ramalhete
framalhete@autonoma.pt
Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal | Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.Nova)
João Caria Lopes
joaocarialopes@gmail.com
Atelier BASE | Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal
Para citação: RAMALHETE, Filipa; LOPES, João Caria – Entrevista à Marusa Zorec. Estudo Prévio 13. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2018. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI:
É com enorme prazer, que hoje temos como nosso convidado o arquiteto e professor Manuel Vicente. Seja bem-vindo!
Muito obrigado, o prazer é meu também.
Queríamos começar por pedir que nos contasse um pouco do seu percurso académico como aluno, se teve professores marcantes e como era o curso de arquitetura na sua altura.
Já lá vão mais de 50 anos. Devo ter entrado para Belas Artes em 53 ou 54, não me lembro bem.
Eu sempre andei em colégios, morávamos na Parede, portanto andei sempre na Parede. Tinha problemas de mobilidade e os meus pais tinham medo que eu me metesse no comboio. Havia colégios melhores no Estoril, mas como aquele era ali ao pé de casa, fiquei lá. É um colégio que não tem história e eu acho que a primeira vez que senti prazer de estar como estudante foi, de facto, nas Belas Artes.
Nas Belas Artes gostava de lá estar, gostava do que fazia. Gostava não só do ambiente, mas também dos trabalhos que nos eram propostos. Era uma escola onde não tínhamos respeito nenhum pelos professores que lá havia. Naquela geração do pós-guerra, o conflito com os professores era uma espécie de cultura da escola. Havia professores de que não se podia gostar de maneira nenhuma…
Havia o Luís Alexandre Cunha, acho que com ele aprendi coisas de que ainda hoje me lembro, não eram coisas concretas, nem coisas necessariamente disciplinares, eram maneiras de olhar o mundo, e preocupações divertidas. A primeira coisa que fazíamos era forrar os estiradores com papel, ele (Cunha) queria muito que tivéssemos a medida, que a medida fosse uma sensibilidade, não necessariamente a fita métrica, e dizia: “Dobra o papel, agora vira o papel, já tem a medida nos dedos! Faça outra dobra e não precisa de ir ver quanto é que tem a dobra…se tem 2 centímetros ou não.”. Depois tínhamos que fazer a cola, lá púnhamos a cola e lá esticávamos o papel, e depois molhávamos aquilo numa grande esponja, ficava tudo encharcado, e esticávamos, esticávamos e depois quando aquilo secava ficava uma prancheta impecável, tudo forrado com papel de cenário! E isso era na aula dele, digamos que se aprendia, essa prática que tínhamos, era na aula dele: forrar os estiradores. Há anos que eu não uso estiradores forrados, mas acho que ainda era capaz de forrar um. Depois ao longo do tempo do curso, geralmente os trabalhos eram apresentados em painéis, portanto tínhamos que repetir essa cerimónia de colar os papéis numas grades, mas era sempre essa técnica que tínhamos aprendido no primeiro ano.
Também havia o Cristino da Silva que era um homem por quem na altura também tínhamos muito pouca estima e consideração. Ele tinha feito o Capitólio, mas naquela altura não sabíamos, tinha feito o Cinearte, ali em Santos. Era um homem que tinha começado com uma aproximação, digamos, modernista, ao desenho e ao projeto de arquitetura. O programa dos exercícios dele era sempre numa grande zona livre, nos arrabaldes de uma grande cidade. Era um homem que queria que as pessoas começassem de novo, com liberdade, sem constrangimentos. Quando fiz a minha tese, estava a fazer uma moradia para uns cunhados, e falei das necessidades, do dinheiro que eles tinham, que era uma família jovem, tinham dois filhos pequenos…e ele disse “Meus senhores, vêm para aqui, esta é a vossa última oportunidade de sonhar, e porque é que você vem com esse constrangimento todo? Ó homem! Faça uma coisa como gosta, não se preocupe!”. Ele tinha uma certa aversão aos constrangimentos e dizia: “Então mas como é que você imagina? Você agora vai sair daqui com o seu diploma, mas nunca mais vai ter liberdade para imaginar, aproveite!”.
Ele era este tipo de professor, mas que tinha de facto uma relação formal, eu penso que ele gostaria que não fosse tão formal, mas a sociedade lisboeta dessa altura não era muito de facilitar um diálogo intergeracional. O professor era um professor, não dava confiança ao aluno. Depois dizia umas graças, mas o aluno não tinha que responder, era sempre uma relação distante.
Mas ele tinha um assistente de que gostávamos imenso, o Alberto José Pessoa. O Alberto Pessoa é o homem que fez aqueles blocos da Avenida Infante Santo. Ele tinha uma sociedade com o João Abel Manta e com o Gandra, fizeram aquele projeto em conjunto. Eu acho que o grande mentor daquele projeto era ele. Nós gostávamos imenso do Alberto Pessoa, que vinha do grupo do Keil do Amaral, todos com um sentido de humor muito próprio. Ele fazia as coisas com ar muito sério, lembro-me de um projeto que tinha uma escada de caracol, e ele foi assim com o lápis e disse: “ Depois há um fogo e vêm os bombeiros, começam a descer a escada com a mangueira, tropeçam e … morrem!” São pequenas histórias…uma colega nossa que não primava pelo brilho nem pela inteligência, coitadinha, a certa altura tinha umas casas de banho muito extravagantes, e ele disse: “Eu não estou a ver onde é que a senhora vai arrumar as louças na casa de banho?” e ela disse: “Ó mestre, as louças na casa de banho?” e ele voltou a responder: “Não são essas, são outras!”
Ele era um homem assim, era divertido. Depois, desafiou-me para eu trabalhar no ateliê dele, e no ateliê não era a mesma pessoa que era na escola, de maneira que, passado algum tempo, eu arranjei um pretexto, e ele também compreendeu, e vim-me embora.
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Como foi o seu percurso depois da universidade? Esteve na Índia, em Macau, depois foi estudar para os Estados Unidos.
Entre a escola de Belas Artes, que eu acabei em 1960/61, e a minha ida para os Estados Unidos em 1968, passou muito tempo. Estive em Goa primeiro, estive um ano em Macau, voltei um ano a Lisboa, onde trabalhei com a Conceição Silva, depois fui para o Funchal, onde trabalhei com o Góis Ferreira. Depois veio-me essa vontade de ir para a América, e fui através de uma bolsa Fullbright… Pus em primeiro lugar Berkley, que era onde se estava a passar tudo naquela altura, em 1968. Depois tinha posto Columbia, porque era Nova Iorque, e eu achava que em Nova Iorque se passavam coisas muito interessantes, e, no fim, tinha posto Filadélfia, por causa do Kahn. Mas digamos que ia por razões sociais, sociológicas, interessava-me perceber o que se passava e digamos que as escolhas académicas eram importantes, mas eram as menos importantes. E fui aceite em Pensilvânia, na Filadélfia. E quando fui para lá, tinha 33 anos e já tinha construído muito….
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Em Macau, fez muitos projetos em muito pouco tempo.
Fiz muitos, em cinco anos fiz e construí oito ou nove edifícios, era praticamente tudo encomenda pública, só tive dois clientes privados. Para um fiz umas moradias numa rua difícil, foi o meu primeiro trabalho – quer dizer, tinha feito a alteração da casa dos meus pais – mas o primeiro trabalho inteiramente novo foram essas quatro moradias em banda. Fiz também uma igreja que depois não se construiu, para uma irmandade missionária. Fiz uma habitação para realojamento de noventa apartamentos com um programa mínimo, numa grande zona de Macau, que estava cheia de população deslocada – depois das grandes convulsões que houve na China, houve muita gente que ficou deslocada e emigrou para Macau. Como Macau tinha muitos terrenos vazios, foram construindo bairros de barracas. Era um mundo muito diverso de camponeses, no meio de uma cidade, que iam criando hábitos urbanos. Os miúdos eram muito engraçados, de manhã iam todos para a escola, elas de saia e meia preta, e os miúdos de calça cinzenta e blazer, e saíam todos dos bairros das barracas.
A certa altura houve um projeto feito aqui, em Lisboa, quando Adriano Moreira era ministro do ultramar. Encomendou a uns colegas meus o projeto do bairro para essa zona de fronteira com a China e, tudo aquilo era totalmente irrealista e ainda por cima era suspeito, porque era pago por Americanos, e os Americanos naquela altura não podiam penetrar na China. As pessoas que se queriam candidatar às casas nesse bairro tinham que preencher umas fichas, e ficavam todos registados. O governador da altura não achou grande graça a isso, e o próprio Adriano Moreira também não, o projeto foi descontinuado e nós, no gabinete de urbanização, que era um órgão de staff do governador, fomos encarregados de fazer um plano para ali. Delineámos um plano com uma distribuição de tipologias de fogos por dimensões do agregado familiar. Mas depois a lógica de distribuição dos fogos era outra, começava pelas famílias maiores, fogos que tínhamos destinado a famílias de 2/3 pessoas, passavam a ter famílias de 16 pessoas. Mas Macau sempre foi uma cidade que tem uma história de grande densidade, densidades perfeitamente inacreditáveis e impossíveis de sustentar na Europa.
Macau não era uma cidade de grandes conflitos, o que é quase inacreditável e espantoso, dadas as condições de habitação da própria cidade serem muito duras. Os cantonenses viviam muito na rua, não recebiam em casa, recebiam no restaurante, davam as suas festas nos restaurantes, nos sítios públicos, e não era propriamente o conceito de casa que tínhamos, não era a cultura deles, vivia-se muito na rua. Macau tinha essa vitalidade enorme e extraordinária, todos os sítios públicos eram ocupadíssimos, barulhentos, tinham uma multidão, tinham tendinhas, vendiam comida, vendiam roupa, vendiam tudo e mais alguma coisa… é engraçado porque depois, pouco a pouco, houve uma penetração de consumos, que transformou também a sociedade, passaram a ter as suas casas mais decoradas, chamavam decoradores para lhes fazer as salas. Os mais ricos tinham muito essas coisas, mas não era por isso que viviam mais em casa, ou passavam a comer em casa.
Eu fiz um casarão enorme para um homem muito rico, e um dia ele chamou-me lá porque queria fazer uma extensão de uma varanda e “amarquizar”, porque era naquele recanto escondido que ele e a mulher passavam os dias, tinham um grande ecrã de televisão, e o resto da casa estava toda mobilada, mas desabitada e estavam ali os dois, já tinham uma certa idade, ali jogavam Mahjong, ali comiam…Lá lhes desenhei a varanda e a marquise e eles ficaram aparentemente muito contentes!
Lembro-me que uma vez estava em Bruxelas, em 1989 e a certa altura, estava numa rua e senti algo de estranho, algo que eu não sabia descrever, e depois percebi o que era, é que a rua estava completamente vazia! Estava sozinho naquela rua, era uma rua central, uma rua larga. Olhei, virei-me para trás, virei-me para a frente e eu era a única pessoa que havia naquela rua. E pensei: “Que engraçado, em Macau nunca se estava sozinho!”. E isto abrange as vinte e quatro horas! Macau estava sempre, perpetuamente ocupado, em movimento, nessa sociabilidade intensa. Era agradável viver num sítio daqueles, onde estava sempre tudo a funcionar.
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E quando chega aos Estados Unidos, vai já com uma vivência diferente, de viver em vários continentes e já com um percurso profissional que lhe dá outra maturidade.
Eu era o mais velho daquele grupo de pessoas. Concorriam duzentas pessoas, e eles escolhiam vinte…E era engraçado, porque desses vinte candidatos, catorze eram estrangeiros! Havia um tipo muito engraçado, um judeu, mas era de África do Sul, havia um Libanês, havia Chineses, havia Japoneses, havia Alemães, Suíços, havia eu que era Português. Os americanos não eram a maioria. Era engraçado, passávamos a vida em casa uns dos outros, mas havia uma diferença muito grande de experiências e de cultura.
Eles não chegavam a adquirir conhecimentos, vinham com a prática de colher informação. Não havia ainda os computadores, mas a biblioteca era um sítio onde se ia, onde se tirava fotocópias, havia uma produção grande. Nós, os europeus, sobretudo os franceses, italianos e espanhóis, tínhamos uma relação com a aprendizagem muito diferente. Nós líamos os livros que nos interessavam, não líamos os livros porque tínhamos uma reunião e eramos obrigados a ler aqueles livros todos… Nós íamos para a biblioteca ler um livro, e por acaso encontrávamos outro, e ficávamos a ler o outro que era muito mais interessante do que aquele que era suposto termos lido. Eramos mais livres, não nos espantávamos tanto, não éramos muito virados para a especialização.
Eu frequentei uma disciplina – foi o princípio de toda esta vaga ecológica ambiental – com um homem engraçado, escocês, o Ian Mac Carg. Ele dava umas aulas muito interessantes porque convidava os maiores especialistas de renome mundial para ir falar sobre a sua disciplina. Nós, os não-Americanos, tirávamos grande partido daquilo, porque ouvíamos histórias fabulosas, experiências em áreas disciplinares que não nos eram muito familiares. Ouvia aquilo e ficava fascinado e ia à biblioteca à procura dos livros. Deve ter sido a primeira vez na minha vida que fui a uma biblioteca. Na escola de Belas Artes havia lá uma coisa qualquer escondida que devia ser uma biblioteca, mas nunca íamos lá… Os livros que líamos eram os que nos aconselhávamos uns aos outros. Li o que se lia, o que era suposto um estudante de arquitetura ler, li Le Corbusier, mas líamos por formação extracurricular, mas admiro-me muito que o Cristino da Silva tenha lido algum livro de arquitetura na vida dele; o Alberto Pessoa também nunca deve ter lido nenhum livro de arquitetura nem de teoria.
Mas aprendia-se muito, era uma formação que tinha muito de artesanal, aprendia-se um ofício. Aprendíamos a desenhar, a criar equivalências entre a ideia e o objeto, criávamos uma certa destreza para perceber proporções e dimensões das coisas. Conseguíamos, de alguma maneira agenciar o espaço, tínhamos essa formação, que era uma formação de ofícios, os professores eram mestres, como nos ofícios tradicionais, e depois tínhamos uma formação concorrente que era a história da arte e a arqueologia, mas verdadeiramente, o que fazíamos ali era o projeto, num ambiente de grande camaradagem, ajudávamo-nos uns aos outros – às vezes os do ano atrasado iam ajudar os do ano a seguir, porque estavam aflitos para entregar o trabalho e vinham recrutar mão de obra. Era um coletivo muito engraçado, e como as salas eram amplas, havia muito espaço e muita área, era muito uma vida! Vivíamos lá, muitas vezes saía de lá tardíssimo, às vezes acabávamos os trabalhos com a iluminação da rua porque o contínuo, para nos mandar embora, apagava as luzes, e nós levávamos as pranchetas para ao pé da janela. Era muito uma distinção que o Kahn faz entre o modo de vida e o modo de viver, aquilo era o nosso viver, dali irradiávamos para a vida na cidade…
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Estava a dizer que nos Estados Unidos percebeu que a investigação ia um pouco para além do ofício. Essa ideia de arquitetura como ofício poderia ampliar muito mais o conhecimento sobre arquitetura.
Sempre pensei como arquiteto, e digo uma coisa que pode ser um pouco pretensiosa: nos livros só esclareci melhor aquilo que eu já sabia, ou aquilo que eu já intuía. Nunca aprendi nada com um livro! Lembro-me de ficar muito contente e dizia: “Pois é, que bem, é exatamente isto! È isto mesmo que eu queria dizer!” Isso não só em relação à arquitetura, como à vida em geral. Os livros para mim sempre foram pontos de encontro comigo mesmo, esclarecedores, explicitadores das intuições do meu próprio funcionamento, da minha relação com o observador, da minha observação do real, da minha interpretação, que depois ficava mais esclarecida, mais aclarada, mais bem dita do que aquilo que eu era capaz de dizer sem essa iluminação que os livros me traziam.
Eu acho que na arquitetura a investigação é o projeto, a investigação é o desenho. Quando eu vou desenhar um hotel não tenho que ir comprar todos os livros que há sobre hotéis. Já fui a hotéis suficientes na minha vida, já sei o que é, sei muito mais daquilo que não gosto nos hotéis do que aquilo de que gosto. Se eu não for investigar para uma aplicação, se for investigar por investigar, acho que a certa altura perco a imaginação, fico esmagado pela avalanche de informação. Depois de um tipo receber aquela informação toda, perde a imaginação, está completamente apavorado, nunca mais tem uma naturalidade de separar o essencial do acessório, de criar condições para que as coisas aconteçam.
Quando pergunta se eu percebi as vantagens de um certo suporte, digamos, académico e técnico, eu acho que era mais uma questão de método – também é uma questão de cultura, nós não temos uma cultura de organização, o americano tem essa cultura. Mas isso não me leva a ter voltado da América com nenhuns hábitos americanos, também não voltei de Macau com hábitos chineses, eu acho que uma pessoa que já tem a sua própria estrutura. Não vim da América a comer cachorros e a comprar um churrasco para as traseiras da casa, mas comia churrasco, porque não? Mas não se pode dizer que fiquei muito americanizado, era impossível. Penso que temos uma estrutura cultural forte, feita de hábitos, de tradições, de gostos, de desgostos, de sensibilidades, de modos de olhar. Isso também é verdade, em relação ao povo rural, uma senhora rural de sessenta anos que mude para a cidade, vem com as suas certezas e as suas convicções e com as suas seguranças e ideias sobre o mundo. É interessante ver essa marca cultural em pessoas que não ficam completamente sem saber de que é que hão de gostar, sem saber do que gostam. Isso vê-se muito na nossa situação atual, e na nossa classe dirigente, há de facto muito pouco gosto, as pessoas realmente perderam essa relação profunda com a memória…
Esse capital cultural profundo de que fala. Acha que é ainda hoje um verdadeiro capital? Uma mais-valia para os nossos arquitetos recém-formados? Muitos deles vão trabalhar noutros países.
Eu acho que o cosmopolitismo é uma coisa muito importante, e acho a minha maneira de ser bastante cosmopolita.
Eu acho os brasileiros profundamente cultos, eles chegam aqui e ninguém lhes tira o samba, e a feijoada. O brasileiro está seguro de si em muitos aspetos: pode não ter dinheiro, mas não é um pobre diabo. Tem essas grandes raízes culturais, da comida, da música, do ritmo, do modo de estar, do fascínio, do ser capaz de olhar à volta, de se fascinar com os ruídos, com os sons, com os sabores… Mas acho que quem vai vazio, não só tem pouco para dar, como também se coloca numa posição de grande fragilidade face ao outro, saem sem riqueza nenhuma, estão destinados a ser servos. Quem não diz o que quer, faz o que não quer, faz o que os outros querem. É nesse sentido que eu acho que não se pode mandar as pessoas para a vida tão pouco guarnecidas, com tão pouco capital. Mas, por outro lado, tenho ideia, de colegas vossos que foram para o estrangeiro, e coisas que aparentemente aqui pareciam esquecidas são relembradas, e que têm lá dentro deles uma acumulação maior do que se possa supor.
E qual é o papel do professor?
Eu, como professor, interessa-me muito mais que os alunos descubram aquilo que não sabiam que sabiam. Os exemplos que normalmente damos são para os levar a buscar memórias que eles não sabiam que tinham, intuições, razões pelas quais se sentem bem e não sabem explicar porquê, porque é que chegam a um café e escolhem ir para aquele canto em vez de ir para o outro. Porque é que é um dado adquirido? E valorizar esse adquirido, trazê-lo ao de cima, como na psicanálise, trazer o não dito para a área do dito, ter nomes para aquilo que se sabe, estabelecer conexões que se intuíam mas que se tinha medo de dizer.
Eu acho que era importante que as pessoas saíssem da universidade seguras, não tanto seguras da sua competência técnica, mas seguras da sua humanidade, da sua capacidade, para fazer janelas, sejam eles os caixilhos como forem. Qualquer dos alunos, quando apresenta o projeto final, apresenta a partir de dentro, conta a história de dentro: “…eu subo a escada, e tenho esta janela em frente…” – e percebe-se a invenção de um habitar, que não é invenção de um objeto, não é um exemplo de design, é um exemplo de invenção de espaços com formas, convidativos a um estar confortável, mas com o conforto do corpo e da mente. Uma pessoa tem prazer, às vezes até pode estar numa cadeira um bocadinho dura, mas está tão quentinho, o sol entra de uma maneira tão boa e começamos a conversar… O Kahn dizia isso… É mais importante saber o que “é”, do que o “como”, porque o “como” vai-se encontrando no “fazendo”.
Pode não dar muito jeito à indústria que uma pessoa não saiba exatamente como se fazem as coisas, mas é muito mais importante para a vida saber o que é que se quer fazer, porque o “como” está em todo o lado! Abre-se o computador, vai-se à internet, vai-se ao Google e está lá como é que se prega isto, e como se faz aquilo. Eu acho que as coisas são para as pessoas e não as pessoas para as coisas, e que por muito complexo que possa parecer uma coisa, construir uma arquitetura qualquer não tem nem metade da complexidade que tem construir um foguetão para ir à Lua, ou um submarino atómico.
Sabemos perfeitamente como é que a vida aparece, a pouco e pouco, depois há umas moléculas que se multiplicam, há umas que se atraem por ter carga negativa e outras positiva, e depois começam a criar coisas mais complexas, e acabam por chegar ao pensamento e à inteligência humana…. E a gente tem que perceber que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma e que não dá para cruzar os braços e desistir.
Quer dizer, embora neste momento as prioridades de investimento da inteligência e dos recursos sejam muito desviadas para uma visão de lucro do capital, do rendimento – as finanças tomaram prioridade sobre a economia, não há o pensamento económico, há o pensamento financeiro – e portanto uma grande parte dos recursos da humanidade estão investidos em coisas que não têm a ver com a vida, que não servem para o progresso da vida. Quer dizer, há remédios que não são fabricados para África porque não vale a pena, não há mercado que compense a produção dos remédios, e portanto vivemos num mundo com as prioridades muito pervertidas, pela implacável lógica do rendimento do capital…
Eu lembro-me muito bem, no meu tempo, das pessoas dizerem assim: “Como é que o Alfredo da Silva enriqueceu?, Olha, foi a emprestar a viúvas juros elevadíssimos…!”, portanto, no meu tempo, no tempo dos meus pais, o usurário, o tipo da casa de penhores, era socialmente muito desqualificado e ninguém respeitava a pessoa que tinha enriquecido através desse tipo de manobras e negócios, e de emprestar dinheiro a juros, e tirar rendimentos e receber rendas. Eram sempre coisas que não eram bem vistas…” Então mas ele comprava aquilo por cinco tostões e vendia por 25 contos? Então mas isso não é esquisito?” Portanto, esta legitimidade, esta arrogância, esta prepotência dos direitos do capital é uma coisa relativamente nova, recente … Sei que tenho 76 anos, mas lembro-me perfeitamente que o capital não era considerado como é hoje, uma pessoa desconfiava dos ricos socialmente, mas não era só a fidalguia que vivia da exploração dos camponeses, desconfiava do dinheiro fresco, e mesmo as pessoas que viviam do seu trabalho ou da sua indústria também tinham grandes desconfianças do dinheiro fresco, também havia muita corrupção no anterior regime, agora “democratizou-se” a corrupção, dantes era mais seletiva…
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Pensando nessa globalidade problemática atual – com o capital a ser posto à frente de tudo – que perspetiva é que tem sobre a potencialidade da arquitetura, ou seja, que mais-valias pode a arquitetura que se faz hoje, ou que se poderá vir a fazer, contribuir para continuarmos a evoluir, para o mundo não estagnar e ficar a olhar para o passado?
Eu sou otimista por feitio e sou otimista por princípio, por ideologia.
O Almada Negreiros, o pintor, uma vez perguntaram-lhe se ele era pessimista ou otimista, e ele disse que não era uma coisa nem outra, porque entre ele e a vida não havia qualquer mal-entendido. Acho uma resposta bastante bonita, nunca me esqueci. Tenho esperança, acho que tudo acaba sempre por se resolver. A curto prazo, se calhar vai ser muito difícil, toda a situação pode vir a ser muito trágica, mas isso tem muito mais importância para vocês do que para uma pessoa que já está de saída…
Mas, em termos da arquitetura, isso que referes da boa vontade, das arquiteturas de terra, de voltar ao passado, eu penso que, apesar de tudo, ainda existe um modo de produção e um aparelho industrial suficientemente importante e poderoso na sua dimensão, nas capacidades e competências, e não é plausível que se volte ao adobe e à palha. Penso que seria verdade no caso de um Hecatombe, com os sistemas podem falhar todos, basta falhar a eletricidade para ficarmos às escuras, amplamente às escuras, da informação, da luz, para comer… Teríamos de voltar a descobrir uma quantidade de coisas que nem sequer temos memória. Mas em cenários menos catastróficos, eu penso que a arquitetura faz falta às pessoas e que precisamos de um sítio para estar bem, confortáveis, para estar com os outros e connosco.
Os jazigos de família são casas para o estar, não são casas para o ser. E eu penso que a felicidade, o bem-ser mais do que o bem-estar – que é difícil ser bem-ser sem bem-estar – que essa harmonia entre o ser e o estar, são realmente o epítome de felicidade. Seja dentro ou fora de casa, no alto da montanha, na praia, seja onde for, até os Alemães, quando chega o verão vão todos para o mediterrâneo, é muito difícil viver sem ter esses momentos de prazer, de calma, de esplendor, e a casa do Homem não é só uma casa de conveniência, é a Casa do Homem, é um lato senso…
Nós aqui estamos a habitar este estúdio, o escritório, a fábrica, o hospital, portanto, o habitar do Homem, é suposto ele estar protegido das inclemências da Natureza, portanto esse resguardo também é preciso, é preciso ter os seus sítios recatados, onde se descansa, dorme. Ter os seus sítios de relação com exterior, ter os sítios de relação consigo mesmo, e não é a ciência da construção que resolve os problemas da habitação do Ser… Como digo, não há arquitetura sem construção, mas há muita construção sem arquitetura, mas por outro lado, quando a construção se confunde com o negócio da imobiliária, quando a imobiliária vai buscar à decoração uma espécie de enfeites para tapar a nudez e a completa inanidade daquilo que propõem para as pessoas habitarem, se calhar está-se num círculo perverso que só se pode acabar na destruição. Quer dizer, eu queria tirar à arquitetura aquela noção de que “…Ah! Se eu tiver dinheiro ainda chamo um arquiteto!”, queria tornar a arquitetura uma coisa mais vital, queria que as pessoas tivessem a consciência de que é preciso ter qualidade no habitar, como é preciso ter qualidade no comer.
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Penso que a espécie humana não se preocupa com a produção do prazer, com a produção do conforto amplo. Digo muitas vezes, feliz de quem faz o que gosta, porque não precisa de gastar dinheiro em uísque! Como dizia a mãe do João Santa- Rita, “Mas tu não vês que a praia dos arquitetos é o ateliê?” Realmente era verdade, trabalhar naquilo que se gosta é um prazer muito grande, quando a produção toma um avanço sobre o prazer de produzir, quando a necessidade (esta também é do Kahn), quando a necessidade apaga o desejo, quando uma pessoa só faz coisas para ter de receber um ordenado, e precisa do ordenado para pagar as prestações do carro, e a mulher chateia-o porque o vizinho já comprou um carro melhor que o deles, e não tem uísque escocês, tem uísque berbere…. As prioridades estão muito invertidas. Penso que a escravatura nos nossos dias, embora menos aparatosa e menos espetacular é bem mais dura e mais pesada do que alguma vez foi, somos uns consumidores forçados. Mesmo o prazer também já é produzido fora de nós e já nos é vendido e tudo vive em obsolescência. As coisas que eram porreiras há dois anos já não são agora, e eu acho tudo isso muito grave, muito mais problemático que o CO2, ou o petróleo ou o desenvolvimento não sustentável, faz muito mais impressão a vida desqualificada. Perdeu-se qualquer espécie de relação com o Humano, com a Humanidade, por isto é que eu prefiro falar do prazer, do gosto, do bem-estar e do bem-ser, de uma pessoa sentir-se cheio e contente!
Uma pessoa que tem o escritório todo desarrumado diz assim: “Olha, hoje arrumei tudo, pus tudo na gaveta, os livros nas estantes… que bem que me sinto!”, Mas é difícil que um operário ao sair da fábrica de uma cadeia de montagens se sinta muito bem, tem que beber uns copos, tem que fazer umas coisas estúpidas, tem que ir para o ginásio… A gente passa a vida a fazer coisas para se esquecer de tudo o que fez, em vez de passar a vida a fazer esforços para encontrar o prazer e a felicidade e esse bem-estar, esse bem-ser, esse estar em paz.
Não é preciso sair todas as noites, nem ir dançar, nem fazer nada, basta estar, ser bom, estar em paz, não estar completamente roído de problemas: “… Amanhã vai ser uma chatice, e a estrada está cheia, e o metro avariou, e tenho de ir meia hora antes senão perco o autocarro…”. Uma pessoa não pode viver neste stress todo. Também não tenho que morar num lado (da cidade) e trabalhar no outro. Se calhar as cidades não deviam ser tão especializadas. Um tipo devia poder trabalhar ali a dois passos de onde mora. Todo esse sonho de cidade, sem automóveis, que eu não partilho, tudo isso seria verdade se as pessoas conseguirem fazer deslocações curtas. Agora, se uma pessoa mora em Oeiras e trabalha em Setúbal, é muito difícil, não faz qualquer sentido. E depois, se vem a crise, aumentam os preços dos transportes, ainda faz menos sentido, e se perde o emprego ainda faz menos sentido…
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Não se pode viver desta maneira, quer dizer, é horrível, e essa é uma das minhas esperanças. É que a certa altura as pessoas digam assim: “ Não aguento mais! Assim não! Não posso!”. Não interessa nada ter programa, as pessoas, bem pensando, irritam-se muito com esses movimentos que há agora da ocupação e das arruadas, “Porque não tem programa, porque não tem projeto…”, eu acho que é muito mais vital do que isso, acho que as pessoas têm que dizer que basta, chega, como os versos do José Régio: “…Não sei por onde vou, mas sei que por aí não vou…”. E eu acho que isto é um direito de cidadania, um direito da pessoa, quando as pessoas conseguirem realmente dizer assim: -“Mas eu não quero ir por aí!”, -“Mas então morres de fome!”, -“Então morro de fome, que se lixe!”. Mais vale morrer de fome do que morrer de indignidade. E nesse sentido eu penso que a arquitetura faz muito parte das necessidades vitais das pessoas, sempre se fez arquitetura, sempre se celebrou a habitação. Até nas grutas, eles pintavam, iam registando as suas memórias… Era aquilo que lhes dava prazer na pintura rupestre, a pintura rupestre é uma manifestação da alma, da alegria do homem no trabalho! Como dizia Ruskin, uma pessoa tem que ter alegria no trabalho, muitas vezes estamos nos ateliês, estamos a resolver um projeto, e há uma altura em que um tipo faz uma coisa de que gosta tanto – pelo menos nos ateliês que eu frequentava – “Epá anda cá, venham cá todos ver isto, isto não é bestial?!”, um tipo tem que contar, tem que mostrar, tem que haver essas explosões de alegria.
Cada pessoa é cada pessoa e tem de criar as suas próprias oportunidades, eu durante muito tempo dizia que se não tivesse tirado um curso superior, uma das coisas que não me importava de ser era chofer ou pedreiro. Acho que deve ser porreiro uma pessoa estar numa obra e vai pondo os tijolos e vê a parede a crescer. E chofer, porque eu gosto muito de automóveis, gosto de andar de carro, sou um viajante, gosto muito do espetáculo, divirto-me imenso a andar de automóvel, seja eu a guiar ou não, gosto de ver o mundo a deslizar por mim, e escolher os meus pontos de vista. Um arquiteto pode ser chofer, pode ser pedreiro, pode ser o que quiser, desde que seja feliz. Espero que possa ser arquiteto, mas a prática da profissão pode ser feita de uma forma tão alienante e tão alienada, numa grande empresa de imobiliária – que precisa dos arquitetos para ajudar a dourar a pilula daquelas porcarias que eles querem vender e que o marketing estudou e diz que tem que ser assim – eu também não sei se a certa altura, se tivesse que ser arquiteto nessas condições, se não preferia ser pedreiro.
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Embora seja otimista, penso que neste momento não há uma resposta, só se se conseguir ir trabalhar para países em desenvolvimento, penso que aí pode ser muito gratificante. Há lá prazer maior do que ver uma coisa a crescer e a construir-se, a tomar forma. Isto é a felicidade! Como quando o Miguel Ângelo acabou de esculpir uma das suas estátuas famosas e atirou com o martelo à estátua, acho que ainda está lá a marca do martelo, e disse “FALA!” Uma pessoa de repente aproxima-se muito do sublime, transforma a matéria bruta, faz significar o insignificado, põe pedra sobre pedra, constrói, faz de facto significar as coisas. Como quando o Lévi-Strauss conta nos “Tristes Trópicos”, na América do Sul, que um feiticeiro identificou 150 diferentes ervas, onde ele só via erva. Esse esforço de nomeação do não nomeado… Está tudo por nomear, ainda há muita coisa por nomear, esse prazer de ir organizando o mundo à nossa imagem e semelhança.
Uma pessoa pode ser agnóstica ou não, mas entre nós, tem sempre uma formação católica, em que, de facto, fomos criados à imagem e à semelhança de Deus, e há sempre essa vontade de continuar esse gesto da criação, de organizar as coisas de modo a que a gente se possa reconheçer nelas. Podemos voltar a encontrar o ritmo que convém, mesmo que seja à escala dos planetas, podemos ir passar o verão a Marte e o inverno à Lua, tanto faz! Ir ao Algarve ou ir a Marte, é circunstancial, um homem precisa sempre é de se sentir bem, onde quer que vá!