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Ricardo Carvalho

rcarvalho@autonoma.pt
Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal

 

João Quintela

joaopedroquintela@gmail.com
Escuela Técnica Superior de Arquitecura – Universidad Politécnica de Madrid, CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa | Professor no Da/UAL | Arquiteto, Portugal

 

Para citação: CARVALHO, Ricardo; QUINTELA, João – Entrevista ao escultor e professor Carlos Nogueira. Estudo Prévio 19. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2021, p. 2-17. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/19.2

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

É com um gosto enorme que o João Quintela e eu (Ricardo Carvalho) estamos aqui no estúdio da Universidade Autónoma para fazer esta entrevista. Penso que é inevitável seres apresentado como o grande artista que és, mas também como pedagogo, professor, educador – ocupação de grande parte da tua vida e que toca de muito perto o trabalho de inúmeros arquitetos e, em particular, o Departamento de Arquitetura da Autónoma. Queria dar-te as boas vindas e agradecer-te muito teres aceitado este convite, este repto, e dizer-te que na próxima hora vamos conversar sobre Arte, Arquitetura e sobre como é que se partilha, com os outros, uma visão do Mundo.

Quero desde já cumprimentar o Ricardo Carvalho e o João Quintela pelas pessoas que são, pelos profissionais que provam que são e pelos amigos que sempre mostraram que vão sendo. O gosto é meu.

©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio

Começava, inevitavelmente, pela tua prática artística. Há um trabalho que gostava de chamar para o início de conversa, que teve uma génese performativa, em que é escrito numa parede “Todo o mundo é composto de mudança”. Creio que esta frase, que pode ser vista pelos olhos da política, da arte, da arquitetura, enfim, do amor, também é muito importante para falar de pedagogia. Como é que vês esta ideia de um mundo que é uma infinita variação sobre si próprio e a ideia da partilha com os alunos?

Começo por falar sobre a performance em si, para quem não conhece o trabalho ter uma ideia do seu alcance. Expus na 2.a Bienal de Cerveira, cujo tema era “Camões”, porque nessa altura passavam 400 anos da morte de Camões. Estava eu no princípio da minha carreira, não a de “fazer coisas”, porque as faço desde sempre, mas no princípio da carreira de as mostrar. Concebi uma instalação, que é também uma performance, que consistia no seguinte: pedi uma imensa parede branca, eu queria que fosse mesmo uma parede já com tempo, história, com vida; deram-me uma longa parede de um painel, e pedi que houvesse uma zona de quebra, ou seja, um outro painel que lhe desse continuidade. A construção deste trabalho foi uma odisseia. Saí no Porto e apanhei um comboio que parava em todos os apeadeiros. A determinada altura, adormeço, e, quando acordo, vejo a mala onde eu tinha todos os materiais fora do comboio. Salto e entro, com a mala, já com o comboio em andamento. Vejam como num segundo se pode mudar um percurso que tudo levava a crer chegaria ao fim previsto.

Comecei por grafitar nessa parede a frase “Todo o mundo é composto de mudança”, do conhecido soneto de Camões. Os antecedentes são eu ter ido à Biblioteca Nacional e ter tido acesso ao mais antigo original que se conhece desse soneto. Com o verso em questão construí uns milhares de panfletos e, nesses panfletos, pus em grande dimensão a frase de Camões. Em baixo o meu nome e o lugar onde ia fazer a intervenção. Em cima, manuscrevi – com uma caneta muito antiga, que veio do avô, “A Ti”. Ao mesmo tempo, construí quatrocentos pequenos ramos de flores, com guardanapos de papel de café (que me foram dados pelo senhor do café onde eu ia diariamente, a quem pedi para mos vender e ele deu-mos) e aos quais amarrava um fitilho de algodão vermelho, na ponta do qual havia uma etiqueta – daquelas de cartão retangulares com um furo. Na etiqueta manuscrevi “A Camões” e, na parte inferior, pus a minha identificação – o meu nome, Bienal de Cerveira, etc.

Numa primeira instância, escrevi “Todo o mundo é composto de mudança”, mas não o fiz de uma forma qualquer. Por exemplo, no momento das esquinas escrevi um “MU” e, quando dobrávamos a esquina, escrevi “Dança”, logo a seguir. Entre outros rabiscos, grafitei na parede o pronome “Te”. Ou seja, a ponte com o outro, a relação com o “outro”, que envolvia com um círculo como forma de dar realce.

No momento da inauguração, nesse espaço entre as duas paredes, que formavam entre si um angulo reto, espalhei panfletos pelo chão, como se os atirasse sem grandes preocupações, e depus, no chão, uma grande quantidade desses pequenos ramos de flores. Ramos de flores que tinham a etiqueta “A Camões”. Na parede estava afixado um conjunto de seis ou sete páginas que revelavam o projeto. Sempre com assessores, com o material devidamente protegido e ocultado, que me iam dando à medida que eu percorria esse espaço e ainda o espaço da vila de Cerveira; dispunha os ramos de flores pelo chão, em homenagem a cada um dos quatrocentos anos passados sobre a morte de Camões. E às pessoas dava o folheto onde se lia “A Ti. Todo o mundo é composto de mudança”.

Sou professor também, ou fui toda a vida professor também, e é uma atividade que me agrada profundamente. E devo dizer que essa atividade, como tudo na vida, é uma mistura. Na minha vida tudo se mistura. E mais, as pessoas reencontram-se, mesmo que estejam muitos anos sem se ver. E o que se sente, o que se pensa é sempre trocado com quem se está bem. Tenho a sorte de, na vida, ir estando bem com muita gente.

Começo sempre as minhas aulas por dizer que “antes dos alunos que eles são, eu os vou considerar como pessoas”. E, como pessoas, vou desejar que eles percebam que todo o mundo é composto de mudança. Ou seja, mesmo aqueles que têm uma má base escolar – o que acontece frequentemente – mesmo nesses eu tenho direito de apostar e tenho a garantia de que, não sendo tão comum quanto desejável, o salto qualitativo é sempre possível. Assim, convido os alunos para se esforçarem para aprender, que gostem do que estão a fazer, que continuem a trabalhar. Convido-os a criar um método, uma abordagem, uma aproximação, uma capacidade de incorporar informação e conhecimento, que terão de articular e trabalhar para poderem vir a ser o que quiserem, que, à partida, é o desejável e é o objetivo.

O exemplo mais acabado desta situação de que falo foi o caso de um aluno do 1.o ano de Arquitetura. Eu dei a bibliografia e há um aluno que diz que nunca tinha lido um livro.

É claro que fiquei espantado, um espanto que procurei conter e disse-lhe apenas que era uma boa altura para começar. Tinha de ser um livro que se adaptasse às suas bases e aos seus interesses. Sobre isto vou apenas dizer que o vi todo o curso com livros na mão. Há muito tempo que o não vejo, mas sei que está a fazer um doutoramento. Ora, um aluno que chega à faculdade sem nunca ter lido um livro acabar o curso e começar um doutoramento, quer dizer alguma coisa. Não vou dizer que isto acontece com todos, mas se aconteceu com um o saldo já é positivo. Portanto, aquilo que pretendo dos meus alunos, e mesmo quando falo de trabalhos artísticos ou deste trabalho em concreto, que tem no seu fraseado palavras que se dirigem mesmo a um crescer, aquilo que eu faço é convidá-los a não estarem parados e a aprenderem a aprender.

©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio

Acho interessantes estas diferentes leituras que podemos ter através deste teu trabalho e penso que isto se estende também às tuas aulas de Desenho. Tive a sorte de ter sido teu aluno, no secundário e depois na universidade, e um dos aspetos que recordo frequentemente era o facto de as aulas práticas serem complementadas com leituras de poesia, com aulas sobre música, com outras reflexões sobre a vida, ou até mesmo de âmbito mais filosófico, o que revela um entendimento do Desenho numa esfera bastante mais abrangente. Neste sentido, pergunto: O que é para ti o Desenho?

O Desenho, muito mais do que uma disciplina, é um Universo. E o Universo comporta tudo. Devo dizer-vos que tive a sorte de ter vivido em Africa, tive a sorte de, mesmo em tempo de guerra, ter dado aulas numa escola religiosa onde as crianças eram muito carentes, em termos económicos e não só, mas que conheciam a sua terra e o ambiente com que lidavam. Quando elas começavam a trabalhar com lápis e com papéis e a fazer desenhos era fantástico, guardei muitos desses desenhos para mim.

Nas aulas, mostro filmes, recomendo que vejam filmes, ou levo os alunos a ver bailado. Durante muitos anos, acompanhava três turmas de alunos à Gulbenkian para ver os ensaios gerais. Levava-os para depois conversar sobre eles. Cada um levava a sua leitura para as aulas e, em coordenação, discutíamos e procurávamos entender. Porque o universo de que estávamos a falar era muito mais amplo e muito mais rico do que aparentemente aquela música ou aqueles saltos.

Por falar em dança, devo dizer que sempre levei os meus alunos de Arquitetura a ver dança. É claro, não fui ao bailado clássico. Este tem a importância histórica que ninguém nega, mas prefiro o contemporâneo, porque pede de cada um uma capacidade de criação, de invenção e de participação, muito mais rica. Levo-os a ver dança porque o meu entendimento do espaço, lembro-me bem, sei bem, tenho a certeza, surgiu na terra onde eu nasci, muito longe daqui – e onde o vento sopra de outra maneira. Era um espaço imenso a perder de vista, de céu, de mar, de verde e de terra. Levei muitas vezes os meus alunos a ver bailado porque o arquiteto é, indiscutivelmente, um profissional que conhece, como poucos, o espaço. E eu acho que como o arquiteto só há outra profissão onde o espaço é trabalhado soberbamente e onde há um autoconhecimento e um domínio, que é, precisamente, na dança.

Lembro-me de ter visto o Rudolf Nureyev entrar em palco a dançar O Corsário, de Drigo, dando piruetas para trás, de costas, e fazendo várias voltas ao palco, sem nunca perder o sentido da geometria. Os arquitetos têm de ter esse conhecimento, e eu levava os meus alunos a ver a dança para, precisamente, perceberem a dimensão a que era preciso serem capazes de chegar. Sendo que não é um fim, porque há sempre mais a fazer.

Resultado: penso que tudo tem a ver com tudo. E, no caso concreto da Arquitetura, o conhecimento de todas as matérias é fundamental. Por exemplo, todos nós sabemos que a junção de uma parede de madeira com uma parede de cimento, rebocada, exige preceitos. Até porque, se é fácil executá-la, mantê-la estável e com qualidade é difícil. Eu dizia aos meus alunos “andem na rua de nariz no ar. E quando virem uma parede nestas circunstâncias, procurem perceber como foi executada”. Até porque os arquitetos sabem muito, mas há situações em que os operários, com a sua experiência adquirida, quando são profissionais de qualidade, têm saberes, ou apontam soluções para resolver essas questões. Tudo tem a ver com tudo. Eu punha-os a ouvir Ópera porque, ao ouvirem, e estou a pensar nalgumas árias que eu punha da Maria Callas, os alunos percebiam as nuances, as variações, as diferenças de intensidade que cada sequência de sons produzia, e iam percebendo que a cidade, ou o espaço onde as pessoas vivem é cheia de variações, é cheia de articulações. E é bom que essas articulações se encontrem, mesmo na diferença e na presença do erro – que é uma coisa que não rejeito, se for possível saber integrá-lo no sistema.

©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio

O teu corpo de trabalho coloca questões muito fortes para qualquer disciplina, que têm que ver com esta ideia de o trabalho estar sempre em aberto. Falas muito da questão do erro, falas na ideia de qualquer coisa que está em curso, até à decisão última de assinares uma determinada peça e ela ficar preparada para ser mostrada a todos. Ou seja, é preparada para ser pública e, antes disso, ela é do artista, é privada, e enquanto é do artista está em permanente mudança. Gostava que partilhasses um pouco estas ideias sobre a tua prática artística do ponto de vista da transformação permanente de um objeto artístico.

O meu trabalho é sempre um trabalho muito lento. Quando inaugurei o Museu de Santo Tirso, que é uma obra conjunta do Eduardo Souto Moura e do Álvaro Siza Vieira, usei uma peça em bronze que estava no meu atelier, pronta, há 30 anos. Achei que era o momento oportuno porque ela já tinha o ar do tempo que, quando eu a concebi não tinha. E ela não tem patine nenhuma porque não gosto desse tipo de tratamento. Uma vez, o Fernando Calhau, que é um dos nossos maiores autores, disse-me: “Ó Carlos, os teus trabalhos são todos muito bem feitos. Porque é que tens a necessidade de dar esse acabamento?” Ao que eu respondi “eles são feitos com o apuramento de que eu sou capaz”. Acontece que os meus trabalhos precisam que eu os namore, durante muito tempo, para poderem sair do atelier. E só os assino quando saem. Os meus trabalhos, quando saem, já ganharam algumas rugas do tempo. E o tempo era aquilo que faltava na sua condição de irreversibilidade.

Eu, que corro para velho, não me sinto velho pelas rugas que tenho, nem me sinto velho por não ser capaz de fazer o que quero fazer, ou deixar de ter projetos. Eu sinto-me velho, às vezes, porque já não tenho forças para pegar numa barra de ferro grande e tenho de pedir ao meu assistente que me ajude. Ou, então, não subo ou desço a correr uma escada porque o joelho já não está a funcionar. De resto, as coisas são sempre um contínuo, em permanente mudança.

©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio

Gostaria de fazer uma pergunta que relaciona a primeira parte da conversa – em que falavas das ações performativas – e agora esta questão dos materiais e da passagem do tempo. Gostaria de tocar num aspeto que me parece muito relevante, que é o facto de habitualmente propores uma clara distinção de dois momentos da tua obra. Um primeiro a que chamas Esbanjamento e Partilha – no qual se inserem os trabalhos ligados a ações performativas e a peças com carácter mais efémero – e um segundo, que defines como Contenção e Permanência – onde se encontram os trabalhos que conhecemos melhor por se tratarem de obras de carácter mais permanente e que estabelecem um forte diálogo com o domínio da arquitetura. Podes falar-nos um pouco sobre esta distinção tão clara e das relações que encontras, ou transportas, de uma para outra?

Tive uma infância maravilhosa, numa terra maravilhosa, em que eu ia para casa depois das brincadeiras e a minha mãe só me deixava entrar em casa depois de me regar com a mangueira do jardim – de tal maneira eu estava sujo de transpiração e terra. Subi às arvores e também caí das arvores… Isto só para dizer que foi um momento muito rico. Eu vim para o Porto estudar com dezassete anos e, nessa fase e até uns bons anos depois, a vida era qualquer coisa maravilhosa para se desfrutar.

Um dos meus intentos era chegar de alguma forma aos outros, quanto mais não fosse para fazê-los deterem-se para perceber melhor qualquer coisa. Eu fiz essas ações onde eu dava coisas, onde perdia coisas, onde enviava coisas pelo correio, como por exemplo flautas construídas por mim, com um método elementar de aprendizagem de flauta – porque eu acredito que a música é uma das formas de salvação do mundo. Eu queria que as pessoas as usassem e tivessem a música mais perto de si. E, portanto, era um mundo de extrema felicidade, mas cheio de inconsciência. Até que, numa determinada altura, ganhei, para meu mal, mas também para meu bem, a noção da finitude. E como os meus trabalhos se esvaíam e, na maioria dos casos, eu tinha poucos documentos sobre eles – felizmente, tenho reunido mais do que esperava, e tinha sempre um projeto escrito – comecei a trabalhar com materiais que tivessem outra durabilidade. E se no primeiro caso era dar, esbanjar, partilhar, ainda que em muitas situações, anonimamente, neste caso passei a trabalhar, pretensiosamente, com os “melhores materiais do mundo”.

O corten está visto que não é tão duradouro quanto isso, mas as tintas, ainda o mercado de cá não tinha tintas liquitex, eu já as encomendava dos Estados Unidos, aos baldes de litro ou de cinco litros. E eram tintas que eu provava e comprovava, pintando uma grande folha com uma determinada cor, rasgando ao meio, guardando uma delas numa gaveta, e expondo a outra, durante um ano, ao sol, e a resistência à luz era comprovada. Portanto, passei a querer fazer coisas que ficassem. E aqui surge uma palavra: Eternidade. Gosto desta ideia de Eternidade. Quando penso no Cosmos, e eu gosto muito de saber sobre ciência, penso num lugar aonde não se chega. O que é essa eternidade? Arranjei uma fórmula para resolver esse prolongamento que é “até ao fim das terras todas”. Enquanto houver terra – até aí. Portanto, eu comecei a fazer trabalhos que são duradouros, são consistentes, trabalhos que são descritos, para poderem ser restaurados e repostos, se for caso disso. Muitos desses projetos estou agora a pô-los em bolsas acid free. Para quê? Para que durem pelo menos um pouco mais.

 

Isso talvez toque numa nota que gostava de lançar, que tem a ver com o facto de o teu corpo de trabalho se inscrever num campo vasto de investigações onde artistas de tantas geografias diferentes operaram, muitos deles igualmente maravilhosos, o Donald Judd, o Carl Andre, o Robert Smithson, para nomear apenas alguns dos mais conhecidos. Creio que quer tu, quer uma parte desses artistas, perceberam que o património da arquitetura era de facto passível de ser transformado em matéria escultórica. Por isso é que o teu trabalho por vezes se pisa, por vezes é visto como um muro num jardim, por vezes é visto como um empilhamento de determinado material, que pode ser mosaico hidráulico ou tijolo. Por vezes tem uma volumetria semelhante a um arquétipo, que podemos dizer assemelhar-se a uma casa, e, por vezes, relaciona-se diretamente com a cultura arquitetónica, na sua dimensão mais erudita. Gostava que falasses disso a propósito da peça que fizeste para o The Economist Plaza – obra de Alison e Peter Smithson em Londres –, que opera claramente no coração de uma obra de referência da cultura do pós-guerra, de dois arquitetos muito celebrados, e do facto de o teu trabalho, no fundo, também ser uma homenagem ao lugar que o recebe.

© José Manuel Fernandes (beyond the very edge of the earth, The Economist Plaza, 1998)

Exatamente. Devo dizer que se há um lugar no mundo de que eu gosto é da casa. Gosto muito da minha casa. Vivo lá desde 1970, já sofreu alterações, sou o autor do espaço interior, do desenho das escadas, dos rodapés, de tudo. Para mim, a casa é o guarda-joias da vida, o escrínio da vida, como dizia Le Corbusier. Acontece que, sendo a casa tão fundamental para mim, vejo muito na casa o lugar da vida, ou o lugar de preservar a vida.

A história desse trabalho, que se chama precisamente beyond the very edge of the earth, em português até ao fim das terras todas, surgiu do seguinte modo: fui convidado para participar na Trienal de Arquitetura de Milão. Não porque fosse arquiteto, mas porque, ao abrigo das normas da Trienal dessa altura, cada corpo de representação de arquitetos fazia-se acompanhar de outras artes – nesse ano a Austrália levou pintura e o Egipto levou poesia. O comissário convidou-me para levar escultura. A representação portuguesa tinha bons arquitetos e, acabada a Trienal, alguém teve a ideia de fazer circular, por onde fosse possível, essa exposição. Foi aos Estados Unidos e viajou por outros lugares… E a minha peça de escultura ia sempre também. Quando chegou a altura de acontecer em Londres, convidaram-me a criar uma peça propositadamente para aquele lugar. E o lugar era onde funcionava uma instituição de arquitetura. Eu podia fazer a peça nessa área, onde quisesse.

Devo dizer que fui muito bem tratado, como nem sempre sou, nomeadamente em Portugal ou no Brasil. Mas ali não. Quando fui para ter uma primeira conversa, depois do trabalho estar concebido, mandaram-me estar às duas horas no hall dessa instituição, eu vi entrar seis senhores, cada um a seu tempo, e quando saíram estavam vestidos com fato-macaco vermelho. Um era engenheiro de iluminação, outro era engenheiro de estruturas, cada um da sua área, para perceberem o peso da peça, os requisitos técnicos para a iluminação, etc. Durante a montagem, tinha um arquiteto de obra e quatro finalistas de Belas Artes, peguei num mosaico hidráulico e o arquiteto da montagem disse-me que não podia mexer naquilo porque, se se partisse, o seguro não pagava.

À semelhança do que acontece com todos os meus trabalhos, comecei por namorar o espaço. E o que é namorar o espaço? É procurar percebê-lo. É saber a temperatura, conhecer a cor, conhecer a luz, perceber o vento, entender quem passa e como passa – e no The Economist há um grande banco de pedra onde as pessoas, à hora de almoço, se sentam a comer – eu namoro, sempre, longamente, os espaços. E não mentirei se disser que, muitas vezes, são os espaços que me ensinam o que é que devo fazer. Tive a oportunidade de fazer essa peça porque foram exigentes, quiseram uma peça concebida propositadamente para o lugar. Deram-me a oportunidade para perceber o que eu queria lá fazer, lucidamente, conscientemente. Porque o trabalho da criação artística, muito mais que inspiração, é transpiração.

Tirei medidas, fotografei, identifiquei relações. Posso dizer-vos que a minha peça, que tinha a forma de dois muros paralelos que construíam um L, com um dos lados muito apertado e o outro muito largo, ficou localizada de forma a que todos os limites estivessem em articulação com a pré-existência. Um dos lados era a continuação do limite desse banco do jardim, dois dos outros eram, precisamente, no alinhamento do corpo central do edifício. Um outro braço apontava para umas escadas, que davam acesso a uma rua, mas apontava precisamente para o eixo central das escadas. Construí qualquer coisa que, de uma forma percetível ou não, já tinha a ver com o lugar. E isso é sempre fundamental para mim. É quase como estarmos ao vento, a um vento muito forte. Não se luta contra o vento. Temos de fugir do vento ou, então, temos de pôr a mão em curva para o vento bater, fazer a curva e desviar-se. Não se força. As coisas têm de ter alguma naturalidade.

Pouco tempo depois, o meu amigo Luís Tinoco manda-me uma página cultural do The Independent, onde havia uma grande fotografia da minha peça, em tamanho maior que A4 e o artigo chamava-se Curadores de Curadores. E então a curadora mais conceituada nesse momento escolheu-me para se fotografar com a minha peça. Na altura, a organização disse-me que era preciso convidar o Michael Archer – que é professor no Goldsmiths College, e é um crítico muito relevante. Um mês depois, recebo uma carta do Michael Archer que dizia, muito laconicamente, que tinha ido à Universidade de Brighton, onde agora a peça está localizada, pedia desculpa por não a ter visto na The Economist mas tinha gostado muito e queria acompanhar o meu trabalho. Isto é gratificante. Mais gratificante ainda é ele escrever-me esporadicamente. Mais ainda foi há uns anos, quando fui Londres, eu lhe ter escrito a dizer que o queria convidar para almoçar e ele dizer-me que não, que eu ia ficar instalado na sua própria casa.

© António Jorge Silva (casa comprida com árvore dentro, Santo Tirso, 2012)

Há uma característica que intuo, no teu trabalho, que é as peças parecerem querer pertencer aos lugares. Ou seja, temas como tensão, rutura, impertinência não são características do teu trabalho. As tuas peças funcionam, claramente por pertença, empatia e continuidade. E a peça do The Economist é exemplo disso. Mas não só, quando trabalhas num meio que não é urbano, e tens peças em exposição permanente cá em Portugal, elas continuam a querer pertencer. Muitas vezes agarram uma árvore, fundam o lugar. Concordas?

Concordo. E devo dizer que essas situações são consequência de eu ir para o parque, estamos a falar de Santo Tirso, durante dois ou três dias, fotografar, fotografar, procurar o lugar, procurar, procurar. É claro que era um lugar onde eu queria que houvesse espaço, mas onde eu queria encontrar qualquer coisa especial. Até que encontrei duas árvores, muito próximas uma da outra, e disse: “quero que estas árvores se namorem para além do muro que eu vou pôr entre elas” – e as raízes e as folhas namoravam, efetivamente… Curiosamente, o Alberto Campo Baeza, que é uma pessoa que acompanha muito o meu trabalho, escreveu um artigo para o catálogo dessa exposição em que vai buscar uma outra história e encontra uma solução para aquele casamento, o que me foi muito gratificante ler e reconhecer, ou seja, significa que as coisas não pararam… Podem andar de outra maneira, mas não pararam.

© António Jorge Silva (chão de cal, Cordoaria Nacional, 2018)

Ainda neste diálogo com a arquitetura, parece-me evidente que existe uma constante tentativa de diluição das fronteiras disciplinares na tua obra. Os textos de trabalho são versos de poesia, há ações performativas que são danças, desenhos que são esculturas, esculturas que são arquitetura. E no caso concreto da arquitetura parece-me mais relevante, porque de algum modo subvertes elementos que são claramente arquitetónicos, atribuindo-lhes novos usos e novas qualidades: as portas que, sendo um elemento vertical, introduzes nas esculturas como planos horizontais. O mosaico hidráulico, que é um material de pavimento, e propões a sua sobreposição, expondo a sua face lateral. Ou até a cal, que habitualmente é aplicada em paredes, e utilizas para ocupar todo o pavimento de uma sala. Podias falar-nos um pouco desta vontade de dialogar com as várias disciplinas e de que maneira essa vontade está relacionada com uma apropriação e resignificação dos materiais fora do seu contexto habitual?

O que me apetece dizer é que eu gosto muito de Arquitetura. Acho mesmo que gosto mais de arquitetura do que muitos arquitetos. No primeiro dia em que fui para a 1.ª classe, à tarde, estava em casa de uma vizinha que tinha filhos que eram meus amigos, e ela pergunta-me o que é que eu queria ser. Respondi que queria ser arquiteto. Com doze anos, tinha projetos de casas e projetos de museus. Acontece que, até para encurtar caminho, fui para as artes plásticas. Estudei escultura no Porto e depois pintura em Lisboa. E devo dizer que descobri que não seria capaz de ser arquiteto, porque não seria capaz de lidar com o confronto nem sempre fácil com os construtores, ou com alguns proprietários que muitas vezes escolhem as soluções menos adequadas, não aceitando as boas soluções dadas pelos arquitetos.

Todo e qualquer material tem, à partida, características próprias, que são tantas mais quanto formos capazes de as descobrir ou de investir nelas. Eu gosto dos materiais. O meu atelier tem amostras de pedra, de lata, de vidro, dessas coisas todas. Para não dizer que até tem objetos de cozinha que, não fazendo eu cozinha no meu atelier nem usando as panelas como panelas, são elementos que remetem para formas, para articulações de superfícies que me interessam muito. À partida, o meu fazer é de um reciclador que descobre os materiais e lhes advinha as qualidades, que depois só temos de retrabalhar. Quero articular sempre tudo com tudo. Tal como na vida me dou com gente muito jovem ou com gente muito velha. Cada um tem a sua verdade, própria do tempo, mas eu tenho amigos dessas escalas todas, não só da minha geração ou que pensam como eu. Felizmente, tenho amigos que pensam o contrário do que eu penso, mas respeitamo-nos e aproveitamos o que de melhor cada um tem para dar. Porque, se são meus amigos, ambos queremos o melhor, apenas não temos o mesmo caminho para chegar a esse melhor. Com os materiais é a mesma coisa. Os materiais não são inimigos uns dos outros. É preciso é saber casá-los. A Arte Nova deu-nos belos exemplos disso: um anel de ferro com brilhante como pedra, ou um bocado de vidro com um aro de ouro.

 

É como se negasses haver qualquer coisa que, à partida, não consegue sair da sua banalidade. A arte faz o contrário, ou seja, é o nosso modo de olhar para as coisas que as transforma, que as faz mudar. E os materiais, no teu processo de trabalho, parecem estar sujeitos a essa valorização, esse encantamento. Por outro lado, ganham uma ordem que muitas vezes não tinham, porque, à força da repetição, do empilhamento, da própria ideia da construção…

Ganham uma densidade e um peso que se torna visível e reconhecível.

 

Concordo. E o teu trabalho, quando por fim é tornado público, quando é exposto em museus ou paisagens, não deixa de ser um trabalho que assume uma certa ideia de estabilidade e de ordem. Já falaste em permanência e eternidade, mas acho que, ainda antes disso tudo, há uma ideia de ordem dos materiais. Ou seja, eles não estão em desordem, não estão numa condição conflituosa…

Eles estão na sua própria condição. É preciso é saber encontrá-la.

 

E a vida?

A vida? Que coisa maravilhosa. Adoro a vida. Sou velho, tenho 73 anos, tenho muitos projetos para concretizar e, para não perder tempo, há coisas que já estou a mandar fazer em serralharia, para usar daqui a três ou quatro anos. Eu adoro a vida, adoro ter nascido, adoro as pessoas que conheço, adoro as minhas pessoas, os meus amigos. Tenho mais amigos do que a maioria dos meus amigos. A minha vida é muito rica porque eu tenho muitos amigos ao gosto do coração – como dizia Platão, com um sentido um pouco diferente…

O corpo vai falhando, nalgumas coisas, mas há sempre um assistente, que tem uns braços mais fortes do que os meus, que ajuda a fazer, ou um amigo que me ajuda a levar, ou a ir a um sítio ou a outro – e estou a pensar no João (Quintela), que é um amigo para a vida. Ou o Fred, que é o meu assistente de atelier. A vida é uma coisa maravilhosa. E temos de a saber aproveitar.

 

Fiz esta provocação, porque me lembrei das entrevistas que o Pierre Cabanne fez ao Marcel Duchamp, nos anos ‘60, o Duchamp devia ter a idade que tens hoje, e o Pierre Cabanne pergunta-lhe: como é que foi a vida, Marcel Duchamp? E ele dá uma resposta, evidentemente, desconcertante e diz: “A minha vida foi uma vida de rapaz de café. Porque o que eu gostava era de sentar-me à janela do café e ver as mulheres passar”.

Não conhecia. Não conhecia, mas a minha vida é muito boa.

 

E não fazes distinção entre a arte e a vida? Ou seja, a tua obra também é a tua vida?

Não, a minha obra é a minha vida. São uma mesma entidade. Tenho uma casa que acho que é organizada, mas há momentos em que tenho de andar em bicos de pés, porque o chão está coberto de trabalhos em curso.

 

E continuas a usar camisas?

Também. Sabes uma coisa? Tive uma peça rejeitada na Sociedade Nacional de Belas Artes, que queria reconstituir as camisas que usei na altura… foi num outro tempo, com outras mentalidades, tinha, na candidatura à exposição, um risco no chão, muito longo e muito bem marcado, e tinha duas camisas em cima do risco, o que significa que tinham sido despidas e que o risco tinha sido transposto…

© António Jorge Silva (junto ao chão, capela do rato, 2018)

Acho curiosa a maneira como falaste da vida. Há quem considere que alguns dos teus trabalhos são quase uma evocação da morte. Estava a pensar na intervenção na Capela do Rato, que tem uma dimensão simbólica muito forte e quase oposta ao discurso que acabas de ter. Sentimos o silêncio, a penumbra, vemos todos os elementos escuros, e temos apenas o sal, com uma imensa luz definida.

Essa superfície com sal tanto pode ser um túmulo como uma mesa para uma refeição. Tenho uma grande consciência da morte e penso na morte todos os dias. É inevitável, há de acontecer, mas até lá quero poder aproveitar o fruto todo, mesmo até ao caroço.

 

Tenho aqui uma última ideia, que podemos discutir, que tem a ver com uma obra que realizaste, muito forte, em que oferecias às pessoas lápis para pintarem os dias cinzentos. Nós precisamos desses lápis, mais do que nunca, porque o mundo parece estar a fazer uma série de reacertos que nos deixam bastante assustados… Que lápis seriam esses, hoje?

Na performance que fiz, fiz envios para cem pessoas distintas, cujas moradas encontrei ao acaso na lista telefónica. Portanto, cem pessoas terão recebido envelopes com lápis de cor, sem marca, e ainda uma folha que dizia “Lápis de pintar dias cinzentos”. Esses lápis foram enviados na véspera do inverno, para que as pessoas se preparassem para o frio da estação.

Os lápis de hoje são bem mais complicados. Porque exigem, pelo menos, tempo para as pessoas pensarem em si. Acho que esse tempo não existe. Como professor, penso que esse tempo era preciso para que os pais lidassem com os filhos, e que não fosse só à hora de irem para a cama. Que lidassem com as dificuldades do quotidiano, porque é nesses pequenos treinos que a águia treina o grande voo. Penso que as pessoas deveriam ter mais tempo e, sobretudo, deveriam ser capazes de identificar os valores que sentissem ser os melhores para elas próprias. O valor da estima, o valor da entreajuda, da companhia, o valor de uma boa conversa, mesmo sem que haja lareira. É isso que é fundamental. As pessoas têm de acordar para si próprias… Não sei o que é a felicidade, como não sei o que é a infelicidade, nem são termos que eu use. Conheço um grande poeta, que tem um livro cujo título tem a ver com a felicidade. Eu jamais poria num título “a felicidade”. O viver melhor tem a ver com o facto de cada um ser capaz de se conhecer um pouco melhor, de se dar algum tempo a si próprio, para si e para os que lhe estão perto. Não quer dizer que cada um de nós seja capaz de mudar o mundo, já não acredito nisso, mas se formos capazes de mudar dois ou três que estão perto de nós, já valeu a pena.

 

O João e eu temos aqui um poema, um troço de poema, como homenagem àquilo que no teu lado performativo como artista, como Homem, fazes muitas vezes aos teus alunos e amigos, a quem lês poesia. Essa poesia tem, obviamente, o intuito de mudar o mundo, porque somos confrontados com ideias que nos fazem pensar melhor, ou pensar de novo. São duas frases escritas pelo Arseni Tarkovski. A ideia é profunda, o poema é curtíssimo: “Nenhum mal se perdeu, nenhum bem foi em vão”.

É verdade, é muito verdade.

 

Obrigado, Carlos!

 

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