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Tiago Leonardo

tmgleonardo@gmail.com

 

 

Para citação: LEONARDO, Tiago – água. e a casa é o mundo, de Carlos Nogueira. Estudo Prévio 24. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, maio 2024, p. 164-167. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/24.01

Artigo recebido a 30 de abril de 2024 e aceite para publicação a 15 de maio de 2024.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Uma forma de repetir sem se ser repetitivo

 

Tive o prazer e a felicidade de ter acesso antecipado ao catálogo água. e a casa é o mundo, de Carlos Nogueira. Compõe-se em duas partes, fotografia e escrita. É um objeto cuja materialidade se apresenta ao serviço do conteúdo – desde o grafismo ao encadernamento – sem competição. É concebido com atenção, cuidado e elegância a que o artista nos habituou. Como sempre um objeto de coleção. No entanto, para escrever este texto, não precisaria de o ter visto, porque não é na forma que reside a distinção.

O que aqui se pretende, é, de modo necessariamente breve: Identificar e descrever o modus operandi aplicado por Carlos Nogueira na sua produção gráfica (que tem vindo a transfigurar os seus objetos do espaço para a folha de papel desde a década de 80); Entender como a mesma formula é utilizada pela primeira vez pelo artista, na exposição homónima no Palácio dos Anjos, para fazer renascer objetos “repetidos” no mesmo formato em que foram criados, o espaço; E, o mais importante, perceber de que forma – por consequência do que foi anteriormente descrito – este catalogo pode marcar uma viragem na produção gráfica – e no trabalho geral – do artista.

 

Com plena noção que aqui se levantam mais questões do que apresentam respostas, vamos por partes:

 

I

No atelier de Carlos Nogueira entram objetos acabados, preexistentes, rejeitados e ultrapassados. É neste mesmo lugar que o artista intervém formalmente sobre os mesmos e entre resinas e pigmentos faz ascender a matéria além da sua própria realidade física, colocando-os – os objetos – de novo no momento presente. Sobre o risco de ter simplificado demasiadamente um tema tão amplamente discutido, aqui nasce, ou renasce, a sua matéria-prima.

Nesta fase o artista propõe-se a mostrar as peças, frequentemente uma única vez, distribuindo-as e coreografando-as com uma imensa atenção às particularidades do espaço escolhido para as receber. Esta “transformação operada pela montagem no espaço de exposição” [1] é talvez etapa última da legitimação artística da sua obra e inscreve cada peça não só de novo num tempo, mas num contexto.

Como forma de devolver às suas obras – já não meros objetos – a sua intemporalidade e libertá-las das amarras que as legitimam – consequência do desejo de perenidade que caracteriza o seu trabalho – o artista encontra um lugar final onde estes não envelhecem e se tornam indestrutíveis. Um lugar situado entre uma dimensão arquivística e a força de uma nova obra, sendo talvez “o momento supremo de realização conceptual” [2]. E esse lugar é o catálogo.

 

II

Em 1983, por ocasião do ciclo “Panorama do Cinema Dinamarquês”, Carlos Nogueira – sem nunca ter feito nada relacionado – é convidado pela Cinemateca Portuguesa para realizar o grafismo de um catálogo homónimo. O resultado é uma das mais originais publicações realizadas pela instituição até à data. Num embrulho lacrado, como uma prenda dirigida ao espectador – e essa experiência da abertura é de caracter pessoal e intransmissível, desafiando a própria lógica do cinema enquanto pratica coletiva – estão três volumes constituídos por fotografias dos filmes que passaram no ciclo. Todas as fotografias são destacáveis, reordenáveis, não estão paginadas, e nada – para além do conhecimento a priori do espectador que acompanhou o ciclo – sugere uma ordem. Ultrapassada essa vontade de encontrar uma verdade as possibilidades são tão extensas quanto as combinações.

Carlos Nogueira identifica a característica essencial no cinema, a sua temporalidade e narrativa definida, e, servindo-se das possibilidades oferecidas pelo médium hospedeiro da transfiguração (o livro), oferece-a ao espectador, colocando-a em causa, e continua a falar de cinema fora do seu meio de apresentação original. Isto configura talvez um exemplo extremo do que o artista virá a fazer quando a matéria-prima deixa de ser o frame e passa a ser exhibition view.

Substitui-se a narrativa – que apesar de presente não é protagonista – pelo espaço. Os objetos não podem ser tocados ou circundados, a sua presença é meramente artificial, e é nessa impossibilidade que reside o seu potencial criativo.

A falta de ambição autoral da fotografia de exposição, que caracteriza a sua própria tradição, confere à mesma uma estética comparável à dos objetos que repousam atelier antes de Carlos Nogueira intervir sobre eles. Tudo isto permite ao artista distanciar-se do próprio corpo de trabalho para o reescrever e reorganizar, olhando para este como “um estrangeiro que está «acolá»” [3] sem esquecer a sua componente arquivística “porque ele está aqui. Aqui, no «lá»” [4]. E, ultrapassada esta experiência de Unheimlich, oferece-o ao espectador enquanto obra autónoma, mas vinculada a uma outra (a exposição).

 

III

É certamente possível encontrar cruzamentos entre ambas as “fases” descritas (ambas acentuam as qualidades dos formatos em que existem) e definir o papel de Carlos Nogueira como de figura tutelar encarregue de reescrever e reorganizar um conjunto que varia. No entanto esses conjuntos eram até agora projetos específicos para espaços vários, que se transfiguravam depois para as páginas, práticas isoladas. Mas, e se esse conjunto se elevasse, se virasse para si próprio e – num sinal de maturidade – se passasse a definir como todo o trabalho do artista desde o início dos anos 80? É aqui que voltamos a água. e a casa é o mundo.

Num texto a ser lançado no catálogo homónimo, Marta Sequeira prossegue esta ideia, onde acrescenta que o que há de verdadeiramente surpreendente nesta exposição – ou o que o pode parecer – é que façam parte da matéria-prima do artista, não apenas esses objetos rejeitados – que partem de um patamar do qual tudo o que detêm é potencial, pois da sua natureza tudo acaba – mas obras suas, já anteriormente apresentadas.

Ora, devido às condições de produção já referidas anteriormente, este exercício significa um retrocesso ou anulamento da “transformação operada pela montagem no espaço de exposição” [5], que “despromove” as peças à categoria de “objetos prontos” (pré-dispostos), à sua “juventude” ou início do seu tempo, que paradoxalmente, por vias desta nova forma de proceder, os torna intemporais. Esta reorganização resulta numa ressurreição de objetos vivos, porque estes nunca desapareceram e o seu passado não é omitido, pertenciam antes a uma lógica de arquivo. Nesta exposição são reinseridos – espacialmente – na lógica interna do trabalho de Carlos Nogueira [6].

A questão que se coloca agora é: se se apurou que a existência do catálogo vem responder à necessidade que os objetos de Carlos Nogueira têm de se tornarem intemporais, mesmo depois de legitimados como obras de arte, qual a necessidade do catálogo? Poderia supor-se que a dimensão arquivística assumiria a sua totalidade, no entanto, acredito que, libertado da sua função utilitária o catálogo possa estar em pé de igualdade com a exposição – talvez até ao ponto em que o termo já não lhe faça justiça – e um dia conquistar a sua independência. Talvez o catálogo de água. e a casa é o mundo, seja o primeiro passo do que está por vir [7]. Teremos de esperar para ver.

água. e a casa é o mundo, com curadoria de Catarina Rosendo, esteve patente no Palácio dos Anjos até 29 de dezembro de 2023. O catálogo da exposição conta com o registo fotográfico de António Jorge Silva e contem textos de Catarina Rosendo, Marta Sequeira e Isaltino Morais.

Notas

1. GUERREIRO, António – “o atelier invisível” in atelier carlos nogueira. Os Livros de Oeiras, 2024.

2. Idem.

3. NANCY, Jean-Luc – Corpus. Lisboa: Veja, 2000.

4. Idem.

5. GUERREIRO, António – “o atelier invisível” in atelier carlos nogueira. Os Livros de Oeiras, 2024.

6. Essa rescrição tem a sua concretização literal na peça de entrada da exposição, claro retorno à da exposição beyond the very edge of the earth em Londres, onde o artista altera o que estava escrito anteriormente para o título desta exposição.

7. O catálogo atelier carlos nogueira constitui já um primeiro sintoma de mudança.